domingo, 22 de novembro de 2015

Juan Goytisolo: "Uma cultura que se fecha sobre si mesma condena-se à extinção"

Passou de escritor maldito a Prémio Cervantes (2014). Procura "o maior número possível de releitores".


Juan Goytisolo esteve no LEFFEST em Lisboa
Por Ana Sousa Dias

A idade é visível no andar vagaroso, mas a cabeça tem uma juventude que quer passear no Chiado e na Baixa em vez de se recolher nos belos salões de Seteais, onde conversamos. Em Portugal para participar no Lisbon & Estoril Film Festival no início do mês, Goytisolo diz gostar do Podemos e detestar nacionalismos. Amante da cultura árabe, é contra o radicalismo islâmico. Contra todos os radicalismos.

O Prémio Cervantes foi importante para si por causa do título?

Um prémio com o nome de Cervantes é uma honra. Se tudo tivesse corrido normalmente, já mo deviam ter dado há muito, mas havia uma forte resistência devido à minha oposição ao cânone literário nacional católico. Fizeram sete votações até me darem o prémio.

É um grande leitor de Cervantes, que foi uma figura fora da norma.

Escrevi bastante sobre Cervantes. Ele influenciou todo o romance europeu, de Sterne a Diderot, de Dickens à literatura russa do século XIX. Em Espanha foi muito mal lido, identificaram-no com os valores cavalheirescos, sem perceberem o carácter inovador da obra. Sou um entusiasta de Xerazade, de As Mil e Uma Noites, e penso que Cervantes adaptou essa tradição literária oral e transformou-a num grande romance moderno.

Identifica-se com a cultura árabe?

A cultura espanhola não pode ser entendida sem referir o papel dos judeus e dos cristãos-novos, sem ter em conta o carácter mudéjar da literatura espanhola. Há três tabus na cultura espanhola. O primeiro é o carácter mudéjar da literatura castelhana e catalã durante três séculos. Em El Conde Lucanor, Calila e Dimna, em Ramon Llull, há passagens de As Mil e Uma Noites e referências contínuas à cultura árabe. O segundo tabu é a importância dos cristãos-novos, uma minoria discriminada. O terceiro é a exclusão do tema erótico. Os padres da minha geração repetiam que, ao contrário da literatura francesa, a espanhola era honesta. Não leram o Cancioneiro de Burlas nem a Celestina... A partir de Isabel a Católica, os poetas põem-se a cantar o império em decassílabos, na tradição italiana, e deixam para trás o tema erótico que tinha sido fortíssimo no século XV.

Vivemos um tempo de refugiados que procuram a Europa. Que Europa é esta?

Toda a cultura é a súmula das influências exteriores que recebeu. Quando oiço falar de pureza cultural, linguística, identitária, rio-me porque a cultura espanhola, como a portuguesa, é uma mistura permanente, e vai continuar a ser. Quanto mais componentes exteriores tiverem, melhor. A riqueza de uma cultura mede-se pela sua capacidade de readaptar as culturas alheias. Uma cultura que se fecha sobre si mesma condena-se à extinção.

É preciso ter coragem para escrever como escreve?

Nunca me preocupou se é coragem ou não, procurei sempre uma fórmula aberta da cultura. Sou antinacionalista por princípio. O meu amigo Luis Buñuel, realizador de cinema, dizia que a pátria é a mãe de todos os vícios e tinha razão. Sempre fui antipatriota espanhol, como sou antipatriota catalão ou basco. Não acredito em valores identitários fixos. A cultura é sempre móvel. A humanidade foi sempre um movimento de povos, de pessoas. Um nacionalista basco dizia "nós os bascos não mudámos de sítio durante 30 mil anos". E eu digo: que pena.


[Foto: EPA/JAVIER LIZON - fonte: www.dn.pt]

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