Moçambicano lança seu primeiro romance histórico e reflete sobre a
memória
Por LEONARDO CAZES
O moçambicano Mia
Couto escreve sempre no limiar entre culturas, a portuguesa e a dos povos
originários do seu país. Em “Mulheres de cinzas” (Companhia das Letras), seu
primeiro romance histórico que abre a trilogia “As areias do imperador”, o
escritor aborda o encontro violento das linhagens que formam a identidade de
Moçambique. A história se passa no final do século XIX, período em que o sul do
país foi palco de confrontos entre os colonizadores lusos e as tropas de
Ngungunyane, último líder do segundo maior império do continente comandado por
um africano.
A trama é conduzida por dois
narradores: Imani, a adolescente da tribo VaChopi educada pelos jesuítas, e o
sargento português Germano de Melo, republicano degredado após participar de
revoltas contra a monarquia. São os dois lados da confluência entre ficção e
ciência, oralidade e escrita, África e Europa que marcam a obra do próprio
Couto. Em entrevista ao GLOBO por e-mail, o escritor afirma que a memória é um
assunto que “me persegue” e critica a transformação de Ngungunyane, um déspota
violento, em símbolo da resistência à colonização. Na próxima quarta-feira
(18), ele vai lançar o livro no CCBB do Rio, às 18h30m. A atriz Fernanda Torres
vai ler trechos da obra.
Você tem uma
longa carreira como romancista, mas só agora decidiu escrever um romance
histórico e começa logo com uma trilogia. Por quê?
O assunto da memória é algo que me
persegue, o modo como a construção da identidade nacional de um país faz uso da
invenção da memória e do esquecimento. Existe um processo de apropriação de um
tempo que é plural e diverso. O imperador Ngungunyane é um personagem
fascinante, foi alvo de mistificações diversas. Por um lado, dos portugueses,
emprestando-lhe grandeza apenas para engrandecer a sua própria vitória sobre o
soberano africano. Por outro, dos próprios moçambicanos que necessitam de
heróis como lendas fundadoras da sua nação. Esta tentação de ficcionalizar Ngungunyane
estava há algum tempo dentro de mim.
Como foi sua
pesquisa para construir o romance?
A pesquisa teve dois territórios
distintos. Do lado moçambicano, as fontes eram sobretudo orais. Tive que viajar
pelas regiões de Zavala, onde vive a etnia VaChopi, e entrevistei dezenas de
pessoas. É evidente que esses registros eram muito díspares e férteis em termos
de reconstrução. Mas, no fundo, era o que queria. No caminho, fiquei amigo de
uma pessoa dessa etnia que vive em Maputo e que se tornou meu guia pela língua
e pela cultura daquele povo. E por que aquele povo? Porque foram os VaChopi os
mais massacrados pelo imperador. Já do lado da memória escrita, foi mais fácil.
Há centenas de publicações sobre o período que os portugueses denominam de
“campanhas de pacificação em Moçambique”. Mas, mesmo aí, perante a aparente
verdade da escrita, existem versões contraditórias que revelam filosofias e
atitudes diversas em relação à África entre os portugueses.
Qual o limite
entre ficção e história em “Mulheres de cinza”?
Os fatos históricos estão ali como
rochedos que dão sustento ao resto da paisagem. Os grandes momentos, as
batalhas, as negociações, os chefes dos vários exércitos, esses são inspirados
na história oficial. Todo o resto é invenção. E todo o resto é o mais
importante, pois eu quero fazer uma história sobre os modos de invenção do
passado.
De que forma o confronto entre os portugueses e Ngungunyane marcam Moçambique?
De que forma o confronto entre os portugueses e Ngungunyane marcam Moçambique?
Existe uma forte lembrança desse
período. Para Portugal, foi um momento dramático porque correspondia a uma
crise política profunda: a agonia final da monarquia e o advento da república.
E Portugal tinha que dar prova às outras potências coloniais que exercia
efetivamente o controle dos “seus” territórios na África. A missão do capitão
Mouzinho de Albuquerque não era apenas a vitória militar, mas o resgate do
orgulho nacional. Esse momento histórico foi vivido como uma epopeia. Em
Moçambique, o império de Ngungunyane teve implicações sociais profundas, mas
ele incidiu apenas por 60 anos e na metade sul do país. Nesse vasto território
criaram-se reações diversas: de devoção e incorporação de um lado, de rejeição
de outro. Quando acontece a independência, foi preciso buscar heróis para
fundar os pilares mitológicos da nova nação. E recorreu-se a essa figura de
Ngungunyane com alguma ingenuidade porque, ao invés de funcionar como um fator
de unificação, essa memória foi um elemento de divisão. Brecht disse: “Ai do
país que precisa de heróis”. No nosso caso, o herói foi mal escolhido, porque o
país prescindia bem daquele herói.
O encontro
entre duas culturas tão diferentes é um dos pontos altos do livro. Esse é um
assunto que te interessa em particular?
Eu sou desse território: o da
fronteira entre culturas. Essa é a minha voz, uma voz repartida entre mundos,
entre a escrita e a oralidade, entre a ciência e a ficção, entre a Europa e
África, entre a língua portuguesa e as outras línguas do meu país. Não é apenas
o meu caso. Todos os escritores moçambicanos vivem distribuídos por esses
universos.
No Brasil, a
história do país anterior à chegada dos portugueses é completamente ignorada.
Como ocorre em Moçambique hoje?
No Brasil, não se sabe. Em
Moçambique, acha-se que se sabe. As duas coisas são graves. Talvez a presunção
de saber seja mais difícil de vencer. Aqui a literatura pode ter uma função
quase terapêutica porque é preciso dizer que não houve um único passado. Houve
muitos. E isso colide com a ideia de certa unicidade e linearidade do tempo. Há
que não ter medo dessa diversidade. Essa relação serena com a pluralidade exige
um trabalho de sedução. É preciso dizer: cada um de nós é feito de muitos. E o
tempo em que vivemos tem muitos tempos dentro.
[Fonte: www.oglobo.globo.com]
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