Há um esforço inútil do aparelho de ensino em lutar contra a maré da língua
Por Sírio Possenti
Há pouco tempo, as TVs apresentaram séries de reportagens sobre educação. Mostraram mais problemas do que sucessos, como típico da imprensa, mas não deixaram de mencionar escolas cujos alunos são bem-sucedidos em processos nacionais de avaliação, mesmo se estudam em condições precárias.
Quero comentar uma imagem que apareceu diversas vezes nas matérias, embora só aparecesse ao fundo. A reportagem entrava em salas de aula e mostrava professores ativos e alunos atentos, fazendo suas tarefas. Ao fundo, a lousa. Nela, escrita à mão, pela professora, uma série de atividades. Não era possível ver detalhes, mas uma ou outra das tarefas aparecia mais claramente, sempre com a estrutura: oração transcrita, em cor (digamos, azul) e espaço em branco (um risco), que o aluno (ou a sala) devia preencher. Tratava-se do velho exercício cujo objetivo é evitar que se repitam os "erros" de sempre. Um exemplo:
"_____ dez anos que ele saiu."
No espaço em branco, os alunos escrevem "faz" ou "fazem".
A lousa estava cheia. Os outros casos também eram dedicados a concordâncias e regências. São, frequentemente, construções que já mudaram, mas a escola insiste em ensinar, em boa medida porque caem em provas (são do tipo "preferir comer do que beber" ou "lembrar de que tem jogo", que se ouvem todo dia, não só na boca de incultos).
Princípios
Faz tempo que se sabe que esse tipo de atividade não produz resultado. Não há livro didático ou apostila, manual de redação ou reunião de dicas de português que não repitam tais lições. O resultado? Nulo. Os "erros" continuam ocorrendo. E em escala cada vez maior, apesar de a escolaridade estar se disseminando cada vez mais. Basta ouvir debates na Câmara e no Senado, mesas-redondas nas TVs, entrevistas nas TVs e rádios, ou ler jornais. Por que o resultado não aparece? As razões são duas. A primeira: em casos como "preferir do que", "assistir o jogo" e "namorar com", trata-se de mudanças gramaticais já consolidadas. As formas antigas (preferir a, assistir ao e namorar o/a) praticamente só ocorrem na escrita de profissionais, cujos textos são altamente monitorados e revisados por especialistas.
Não há razão para não usar essas formas antigas da língua; mas não há boas razões para não aceitar as novas. Está na hora de os estudiosos das línguas e "autoridades" (institucionais ou não) aceitarem os fatos e abrirem mão de dedicar tanto tempo, inútil e equivocadamente, ao ensino exclusivo das formas antigas (que, no entanto, os alunos encontrarão em escritos e, eventualmente, usarão em textos e falas, se quiserem ser mais formais).
A segunda das razões que impedem o sucesso de tais aulas é que elas seguem princípios de aprendizagem errados. Está mais do que provado que treinamento, repetição, exercício (como preferir) não são estratégias de aprendizagem de línguas. Isso vale tanto para aquisição da língua materna por crianças (que nunca fazem exercícios) quanto para aprendizado de língua estrangeira (quem faz muitos exercícios acaba não falando, mas quem passa alguns meses no exterior aprende bem a língua local, sem fazer exercício algum) e para a aquisição de formas da norma culta.
A escola deveria simplesmente acabar com tais exercícios (especialmente se transcritos na lousa) e começar a ler e a comentar os textos de qualidade reconhecida, chamando atenção para as construções que neles se encontram, bem como a revisar as redações dos alunos durante a aula, para que vejam as diferenças que existem entre o texto que escrevem e o texto que é desejável que venham a escrever.
Engano |
É curioso como um texto pode ser lido. Aparentemente, José Augusto de Carvalho não se deu conta de que meu texto da edição anterior não combatia o que ele publicou um número antes, só me forneceu um argumento inicial para desenvolver outras questões. O argumento era que, em "João pesa 70 quilos", "70 quilos" não é objeto de "pesa", embora pareça, se se aplicar à oração uma análise mecânica, como nas expressões enganadoras. Não discuti a teoria dele sobre vozes verbais, embora sua resposta (Língua 114: 56) dê a impressão de que sim. Na verdade, o exemplo citado por ele foi mote para meu texto, que, de fato, não tem a ver com o dele, nem com sua resposta (não sei por qual razão, dedicou-se basicamente à tese de Said Ali sobre passivas sintéticas). No entanto, aproveito a retomada para acrescentar um argumento no quadro abaixo, não pela autoridade de Bechara, mas pela análise "diacrônica" que propõe, mostrando que a intuição dos falantes que a interpretam como ativa anda de par com a perda progressiva do plural do verbo. |
O exemplo de Bechara |
Acabo de ler no Estadão (3/4/2015, p. A9) reportagem sobre o acordo das potências com o Irã envolvendo a questão nuclear. A matéria comenta a tentativa de acordo ocorrida há 5 anos, mediada por Brasil e Turquia. Cita a diplomacia brasileira, segundo a qual aquele acordo era melhor e diz que "perdeu-se 5 anos". De que valeram centenas de aulas sobre a chamada passiva sintética, que deveriam resultar na estrutura "perderam-se 5 anos"? Não serviram para nada! Assim como essas, outras tantas são puro tempo perdido, por equívocos na análise da língua e na escolha dos métodos pedagógicos. Este é um caso de mudança. Linguistas o atestam em diversos estudos. Mas citemos um gramático até conservador. Na página 178 de sua Moderna gramática portuguesa (Editora Lucerna), depois de listar casos de sujeito indeterminado (vive-se bem, precisa-se de empregados etc.), Evanildo Bechara escreve: "Observações finais: Pelos exemplos acima, o se como índice de indeterminação de sujeito - primitivamente exclusivo em combinação com verbos não acompanhados de objeto direto -, estendeu seu papel aos transitivos diretos (onde a interpretação passiva passa a ter uma interpretação impessoal: Vendem-se casas = 'alguém tem casas para vender') e de ligação (É-se feliz). A passagem deste emprego da passiva à indeterminação levou o falante a não mais fazer concordância, pois o que era sujeito passou a ser entendido como objeto direto, função que não leva a exigir o acordo do verbo: Vendem-se casas = ('casas são vendidas') -> Vendem-se casas (= 'alguém tem casa para vender') -> Vende-se casas." |
[Fonte: www.revistalingua.com.br]
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