quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Pasquale Cipro Neto: Falta água na sede do governo?

Como diz um velho ditado, seria cômico, se não fosse trágico. Na semana passada, um site estampou este título: "Grupo protesta contra falta de água na sede do governo". A sede do governo sem água? Como assim? Nossas vigilantes autoridades não merecem passar por isso!

Eta batalha inglória, caro leitor! Lutar contra essas surradas barbaridades no texto brasileiro impresso é mais ou menos como ter esperança de que as coisas neste país um dia mudem, melhorem etc.

Mas voltemos ao título citado. Há erro gramatical nele? Não há, caro leitor, como também não há em algo como "Eu nasci em 1655" ou "Lula e Dilma não sabiam de nada". Em nenhum dos casos, o problema é de gramática; é de outra natureza.

Lido ao pé da letra, o título informa que a razão do protesto é a falta de água na sede do governo. Quando se vai para o texto a que remete a "chamada" de capa, descobre-se o que de fato ocorreu: algumas dezenas de pessoas foram até a sede do governo paulista para protestar contra a falta de água.

E como se conseguiria o milagre de informar o fato verdadeiro, com as mesmíssimas palavras? Bastaria inverter a ordem: "Na sede do governo, grupo protesta contra a falta de água"; "Grupo protesta na sede do governo contra a falta de água".

Alguém dirá que o contexto faz o leitor entender a intenção do redator. Esse contexto, obviamente, não é o do texto, que não há; o que há é um título, que remete a uma realidade sobejamente conhecida de todos. O fato de a realidade nos impor a leitura "correta" do título não ameniza o desastre. Não é possível nem é preciso redigir assim.

Agora veja o que ocorreu em Guarabira-PB, também na semana passada. Uma loja estampou um cartaz com estes dizeres: "Oferta imperdível - Chip Vivo - R$ 1,00 - com - aparelho" (não havia esses tracinhos; eu os pus para indicar as quebras de linhas que havia no cartaz).

Munido de R$4, um cliente entrou na loja e foi logo pedindo quatro aparelhos, com os respectivos chips, é claro. Estabeleceu-se a confusão. A polícia foi chamada etc. Um atendente da loja disse que a intenção era informar que, na compra de qualquer celular, o chip custaria R$1, mas, como diz um velho ditado, de boas intenções o inferno está mais que cheio.

A construção é no mínimo ambígua. As frases que expressam a real intenção do redator exigem um verbo ou um substantivo que designe "o ato de". Nesse tipo de mensagem, a ausência desses termos é muito comum e se explica pelo imediatismo que se quer alcançar.

Posto isso, convém citar algumas das possíveis soluções (que vou escrever com a forma e a pontuação de um texto "corrido"): "Oferta imperdível: na compra de um celular, chip (da) Vivo por R$1"; "Oferta imperdível: na compra de um celular, o chip (da) Vivo sai por R$1".
A imprensa noticiou o fato como "erro de português". É muito mais do que um simples erro de português; na verdade nem é propriamente erro de português. É erro de pensamento, de lógica, de raciocínio.

Pergunto, pela enésima vez: não é difícil ser claro quando se escreve, é? E por que será que esses desvios que vimos são tão frequentes? Arrisco um palpite: falta raciocínio complexo, falta desconfiar da obviedade da linearidade, falta releitura da própria escrita, falta... É isso.


[Fonte: www.folha.com.br]

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