É comum no ambiente de multinacionais com presença no Brasil que se adotem normas, programas e códigos das matrizes no exterior
independente de uma adaptação cuidadosamente planejada e implementada,
sob o argumento de que programas globais precisam ser “consistentes”.
Também
é comum que se aproveitem, no contexto nacional, normas, programas e
códigos meramente traduzidos de outras línguas, sobretudo do inglês.
Ocorre que não é pela mera tradução que se consegue consistência, mesmo porque nem tudo pode ou deve ser meramente traduzido.
Numa
adaptação de normas, programas e códigos das matrizes no exterior,
eventualmente pontos que não podem ser razoavelmente traduzidos deveriam
ser omitidos para evitar confusão e a própria inefetividade da
aplicação da norma interna, seguindo a linha de raciocínio de que normas
efetivas devem ser criadas para refletir os costumes de seus
destinatários, inclusive com a participação deles.
Exemplo
corriqueiro de caso em que uma mera tradução não cai bem é a tradução do
conceito de legislação norte-americana de “pagamentos de facilitação”. O
conceito, se não explicado ou se mal compreendido, pode induzir a uma
interpretação de que há conivência por parte da empresa com
propinas, dentro de padrões subjetivos e de difícil explicação.
Novamente, o risco é a inefetividade da aplicação da norma, algo talvez
muito mais grave do que inconsistência de um programa global, e não cair
bem significa exatamente inefetividade, muito além de qualquer
conotação meramente semântica ou de estilo.
Outro exemplo que não
deve ser seguido, importado diretamente de países de tradição
anglo-saxão, é a previsão de que uma empresa só faz lobby legal. Numa atividade – lobby – que não é regulamentada no Brasil, a mera referência à expressão que tem conotação extremamente negativa pode causar uma má impressão de que a empresa opera por meios escusos.
Quando se trata de compliance é um erro grave presumir que se possam usar rótulos em língua estrangeira num país onde não se fala aquela língua. Recorrer a programas de tradução
automática, para reduzir custos, é outro erro grave. Tais programas não
têm o vocabulário especializado e customizado necessários sob o ponto
de vista legal e regulatório. Qualquer pequeno erro pode, a par de
desacreditar toda a iniciativa, atrair uma responsabilidade indesejada
para a empresa e até para seus administradores, a depender de situações
específicas.
E não é demais reforçar: verter é algo apropriado, ao passo que a mera tradução, sobretudo aquela literal, não é.
A
questão é séria. Em situações limites pode haver motivo para que erros
provoquem gargalhadas iniciais nos destinatários das normas internas de
uma empresa que, por descuido ou desconhecimento, aplique algo que deixa
a desejar em termos de compatibilidade com os costumes e cultura local,
que varia até regionalmente. E não se trata apenas de uma necessária
seriedade com relação às normas escritas em si. Eventual percepção de
falta de seriedade pode tolher qualquer possibilidade de efetividade,
minando a inicialmente desejada “consistência”, se se estiver a falar de
programas globais, e bastando por si só para exigir um cuidado extremo, no caso de programa nacional somente.
É
comum que parte significativa dos chamados programas de compliance
adotados por multinacionais com sede no exterior (e agora por aquelas
com sede no Brasil) prevejam treinamento de diversas ou até mesmo todas
as categorias de colaboradores internos e também, por vezes, externos.
Tais treinamentos podem ser presenciais, com instrutor experiente, ou
não. A capacidade de boa comunicação é essencial para isto e os
treinamentos podem ser ministrados online, por DVD ou, por outra mídia
ou forma, não presenciais. É aí que pode estar um grande risco à
seriedade necessária para o assunto.
Há algo de estranho, por
exemplo, em treinamento de compliance com figuras estereotipadas
estrangeiras. Também não há como evitar uma enorme distração e
possibilidade de incompreensão no caso de treinamento em língua
estrangeira ou mesmo em português que não o do Brasil. E será improvável
que mesmo em português do Brasil a distração seja evitada por um
sotaque de quem ministra o treinamento, sobretudo em caso de
peculiaridades das operações de cada empresa, algumas delas em regiões
distantes do das capitais do Sudeste. É possível, por exemplo, que o
sotaque errado para o público errado induza a uma percepção equivocada,
algo que se pode minimizar com treinamento presencial, customizado.
O
que se quer dizer com isso, especificamente, é que o treinamento deve
ser sempre adaptado à linguagem local, bem como deve ser modelado para
que seja facilmente assimilado pela cultura e questões específicas de
cada país, inclusive sensibilidade com relação a pontos relativos à
corrupção e fraude, sob a perspectiva da empresa e seus vários níveis de colaboradores, internos e/ou externos.
Falar em redução de custos chama a atenção de qualquer empresa, inclusive multinacionais. Para reduzir custos
algumas delas costumam contratar um provedor global de serviços, que
pode oferecer os tais “mecanismos e procedimentos internos (...) de
incentivo à denúncia de irregularidades”, inclusive hotlines ou helplines.
Alguns provedores globais de serviços, por incrível que pareça ainda
hoje, desconhecem onde fica o Brasil e que língua falamos. É muito mais
do que o clichê de que a capital do Brasil é Buenos Aires e que falamos
espanhol. Novamente, a questão é séria e assim deve ser tratada. Não
adianta delegar a criação de uma linha direta para denúncia de
irregularidades (de ou sem boa fé) para um provedor que use um call center
em Cabo Verde, por exemplo, pois grande chance há de que a operadora
naquele país fale a língua local, que pouco tem a ver com a nossa que
não vai ser facilmente compreendida até por usuários adaptados a
interação com estrangeiros. Talvez as empresas ainda que multinacionais
mas com sede no Brasil não estejam sujeitas a este tipo de situação, que
representa um risco à seriedade de um efetivo programa de compliance,
mas devem elas também estar atentas para que copiem modelos falhos.
Em
suma, é necessário que qualquer política, código de conduta, programa
ou procedimento esteja disponível na(s) língua(s) falada(s) em cada país
onde a empresa mantém operações e funcionários. A expressão língua(s),
aqui usada, tem um duplo sentido, literal e não literal.
Além
disso, deve-se estar atento ao seguinte: políticas globais normalmente
estabelecem os princípios orientadores e as regras que a empresa adota
para garantir que ela opere em conformidade com as leis em cada país
onde atua.
Em virtude dos anos à frente do Brasil em termos de
existência de leis relativas ao assunto, os EUA, que adotaram ainda na
década de 1970 o FCPA, e mais recentemente o Reino Unido, que adotou lei
ampla em 2010, tem uma tradição maior no desenvolvimento de
procedimentos internos relativos à matéria. Algumas empresas podem estar
sujeitas aos ordenamentos dos dois países acima citados e, agora,
também, ao terceiro, brasileiro. Não é tarefa simples compatibilizar
regras que estejam de conformidade com o ordenamento dos EUA, do Reino
Unido e agora do Brasil. E qualquer deslize numa versão brasileira pode
expor a empresa a responsabilidades e sanções sob um ou mesmo os 3
ordenamentos, inclusive e sobretudo no quesito de efetividade ou
adequação de política, código de conduta, programa ou procedimento.
Vale,
portanto, um alerta a todas as empresas sujeitas à Lei 12.846/2013 – e
são muitas – a respeito da seriedade com que comunicação e efetividade
de programas de compliance devem ser tratadas.
[Fonte: www.conjur.com.br]
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