Como faz quase semanalmente, o eminente advogado e escritor pernambucano
José Paulo Cavalcanti Filho, ex-ministro da Justiça, autor do
premiadíssimo "Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia", escreveu-me
na quinta-feira passada, depois de ler a coluna "O Maranhão", da qual
ele gostou muito.
Em sua mensagem, José Paulo faz referência aos textos em que me afasto
da "gramática ou de como chame seu ofício". O suspeitíssimo "missivista"
queria dizer que gosta muito dos textos que vão além da mera análise de
fatos gramaticais.
Em minha resposta ao caro José Paulo, eu disse que no artigo desta
semana eu o citaria e que ele (o artigo) partiria de uma análise
gramatical para chegar ao que de fato importa (o texto, a mensagem).
Posto isso, vamos ao xis da questão, um título publicado recentemente
pelo UOL: "Em cadeia superlotada, presos comem arroz e galinha crua". O
que é servido cru aos presos? Só a galinha? Ou os dois alimentos?
Vejamos o que diz a gramática: em casos como esse (dois substantivos
seguidos de um adjetivo), o adjetivo pode concordar com a totalidade ou
só com o último dos substantivos. Tradução: poderíamos ter,
respectivamente, "arroz e galinha crus" ou "arroz e galinha crua".
No primeiro caso, não há dúvida: os dois alimentos são crus; no segundo,
pode-se até entender que só a galinha é crua, mas é perfeitamente
possível entender também que os dois alimentos são crus. Vejamos outro
exemplo análogo: "Ele se dedica ao cinema e à literatura
italianos/italiana". No primeiro caso, nenhuma dúvida: o cinema e a
literatura são italianos; no segundo... Bem, a explicação é a mesma que
dei sobre "arroz e galinha crua".
E como é que se redige de forma que não sobre nenhuma ponta de dúvida?
Depende. Se a ideia é fazer o adjetivo referir-se aos dois substantivos,
o melhor a fazer é flexioná-lo no plural ("arroz e galinha crus";
"cinema e literatura italianos"); se a ideia é fazer o adjetivo
referir-se a apenas um dos substantivos, o melhor a fazer é colocar o
adjetivo entre os dois substantivos, obviamente depois daquele que se
quer qualificar ("Presos comem galinha crua e arroz"; "Ele se dedica à
literatura italiana e ao cinema").
Voltando à realidade, à triste realidade carcerária do Maranhão (que, cá
entre nós, não é lá muito diferente da que se vê no resto do país),
alguém talvez diga que a construção "arroz e galinha crua" não desperta
dúvida, não, já que ninguém vai servir arroz cru a alguém. Epa! Peraí!
Arroz cru é mais repugnante ou impossível do que galinha crua? A que
ponto chegamos! A convivência com o descalabro brasileiro é tal que
chegamos até a "esquartejar" a barbárie ("Galinha crua até que dá; arroz
cru não dá" ou "Um dos dois crus até que dá; os dois, não"). Na
vergonhosa barbárie chamada Brasil, nada, absolutamente nada de nada me
surpreende.
Está vendo, caríssimo José Paulo, como a gramática pode ampliar o ângulo
de visão do texto e, assim, até "ajudar" a aumentar a inquietação do
leitor, do ser humano? Mas dou-lhe razão. Os artigos cujo cerne é a
análise de textos literários e da sua vinculação (ou não) com a
realidade são mais interessantes.
Em tempo: foram muitas as mensagens de leitores sobre o texto da semana
passada. Alguns cobraram o meu "esquecimento" de outros brilhantes nomes
do Maranhão, como Josué Montello, autor da obra-prima "Os Tambores de
São Luís", o grande Aluísio Azevedo, autor de "O Cortiço", obra
fundamental, o supercriativo Zeca Baleiro e o monumental João do Vale.
Não foi esquecimento, não; foi falta de espaço mesmo. E é claro que a
lista poderia ir bem mais longe. É isso.
Pasquale Cipro Neto
[Fonte: www.folha.com.br]
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