sábado, 18 de janeiro de 2014

Íntimos e infiéis

Esta edição do Caderno G Ideias conversa com dez tradutores paranaenses sobre os dilemas e incertezas da profissão. Transportar entrelinhas e subentendidos para a língua-mãe sem escancarar o texto original é uma delas

Publicado por Karen Monteiro

Caetano Galindo: mergulho no calhamaço
caótico de Ulysses, de James Joyce
William Shakespeare. Will, para os íntimos. Intimidade que continua sendo conquistada por um seleto grupo mesmo depois de 450 anos da morte do maior escritor e dramaturgo do idioma inglês. Quem há de negar essa proximidade, essa via que conecta os tradutores – sim, eles mesmos – a um dos três autores mais traduzidos no mundo? Profissionais com um quê de obstinação esforçam-se para impregnar sua língua-mãe, no caso das traduções de Shakespeare, com os personagens ora sombrios, ora cômicos, que tentam ser dissecados nas camadas não só de linhas e páginas, mas de entrelinhas e subentendidos. Como traduzi-los sem escancará-los? Essa é a questão que ronda a existência dos tradutores. Uma delas.


Outra, e que atinge não só os tradutores, é se Shakespeare foi ou não o escritor das obras atribuídas a ele, polêmica levantada no livro Quem Escreveu Shakespeare?, de Stephen Greenblatt, traduzido por Liliana Negrello e Christian Schwartz. “No original, o título é Contested Will – o segundo termo pode ser lido tanto com o significado de ‘legado’ ou ‘herança’ quanto como uma alusão ao apelido Will. Não há como manter esse trocadilho na tradução”, conforma-se Liliana, uma das tantas tradutoras ao redor do globo que mergulhou nos meandros de uma das peças, sonetos ou poemas de Shakespeare.

Escolher a obra a ser traduzida é um privilégio. O mais comum é as editoras indicarem o título. Na análise de Christian, que tem três traduções encomendadas para 2014, “as obras são compradas pelas editoras de acordo com critérios comerciais e editoriais. Só em situações muito especiais, particularmente no caso de traduções feitas a partir de projetos acadêmicos pouco ou nada comerciais, por exemplo, é que a iniciativa acaba sendo do tradutor. Dos mais de 20 livros em que trabalhei, dois foram indicados por mim: Caro Morrissey [de Willy Russell] e Quem Escreveu Shakespeare?, mas isso é exceção”. Tradutor de prosa, resolveu arriscar passar para o português as letras do cantor Lou Reed (1942-2013). “Não acho que isso vá se repetir, simplesmente porque um livro com as letras completas de um cantor não é algo que se publica muito”, afirma Christian, que traduziu as músicas em parceria com Caetano Galindo, o tradutor paranaense conhecido por encarar o desafio de mergulhar no calhamaço caótico do fluxo de consciência de Ulysses de James Joyce.

Roberto Muggiati: tradutor veterano já se perdeu
 entre gírias
Se as situações de dilema na hora de escolher a palavra mais adequada normalmente são companheiras assíduas do tradutor, a que grau a incerteza se potencializa num texto como o que Caetano traduziu, construído para perseguir os pensamentos, a livre desordem que mistura presente e passado, realidade e anseios? O caminho para lidar com as dúvidas e saber-se confiante de ter escolhido a melhor talvez esteja na aceitação de que os olhos do leitor podem vagar de uma página para outra como fantasmas de insatisfação. “Uma tradução, como a execução de uma sonata de Beethoven, sempre vai ser frustrante para alguns. E, além disso, traduções envelhecem muito mais rápido que os originais. Boas traduções antigas às vezes não se sustentam hoje. Mas não me lembro de algum caso exemplar. Na verdade, se tem uma coisa que esse trabalho te ensina é a ser humilde e não sair apontando dedos e vendo defeitos. Todo mundo faz caca”, reflete Caetano.

Aproximação

Na tentativa de facilitar a vida de quem lê, muita obra por aí acaba emporcalhada. No século 20, Walter Benjamim, filósofo alemão, dizia ser necessário trazer o leitor para o texto, prática comum do romantismo no século 19, que era rebatida por Friedrich Schleiermacher, também expoente do pensamento alemão. O quanto aproximar o leitor, afasta o tradutor do original é tema recorrente nas rodas de conversa sobre o assunto. E a frase “O tradutor é um traidor” sempre aparece como representativa da sina de quem escolhe o caminho.

“Cada tradutor recria aquilo que julga pertinente num determinado texto, e talvez o mais interessante de tudo seja ver como acontece essa recriação, mas isso – é claro – acaba por exigir um conhecimento da língua original. Talvez o ideal fosse apenas advertir o leitor (todo leitor) de que a tradução nunca é idêntica ao original; o que não é uma falha, mas um estado constituinte da tradução”, analisa Guilherme Gontijo. Para quem traduz poesia, então, melhor nem discutir o aval para traição.

“Falar sobre traição é coisa de leigo. Ler Proust na tradução de Mário Quintana e os poetas provençais pela mão de Augusto de Campos, por exemplo, é uma experiência literária integral. A noção estrita de ‘fidelidade’ não se aplica à literatura e à poesia. Um verso não é um teorema. O trocadilho italiano ‘traduttori-traditori’ continuará valendo para as más traduções, que ainda são frequentes”, alfineta Josely Vianna.

Um dos fatores que pode colaborar para isso é falta de profissionalização. São poucos os que conseguem sobreviver apenas da tradução.

A remuneração varia muito, mas em geral o valor fica entre R$ 28 e R$ 40 por lauda de 2,1 mil caracteres com espaços. Se houver poucos tradutores de uma língua ou se a editora tiver pressa, o ganho pode aumentar. Algumas editoras já trabalham com um modelo de adiantamento acrescido do pagamento de porcentagem do preço de capa. “A primeira e última vez que me ofereceram uma tradução (de um poeta americano) recusei, porque queriam pagar uma miséria. O trabalho de tradução-arte é pouquíssimo valorizado no Brasil. Consome tempo, energia, pesquisa, concentração, além do trabalho de recriação”, reclama Rodrigo Garcia Lopes. Em termos de políticas públicas, segundo ele, as iniciativas para divulgar a literatura brasileira no exterior são muito tímidas. “Ainda é muito pouco, por exemplo, o que o Ministério da Cultura oferece para tradutores que querem verter obras brasileiras para outras línguas, cerca de R$ 15 mil por livro. Precisa melhorar”, completa. Dos dez tradutores da cena paranaense entrevistados para o Caderno G Ideias apenas dois sobrevivem da tradução.

O fato é que a língua portuguesa sempre ocupou um lugar periférico na produção de conhecimento no Ocidente. Desde o século 16, quando o latim deixou de predominar, a produção de ponta e a imensa maioria do corpo bibliográfico passou a se desenvolver, sobretudo, em inglês, francês e alemão. No século 20, principalmente no pós-guerra, com a expansão do domínio americano, o mundo editorial voltou-se para o que acontece nos Estados Unidos. “O Brasil sempre foi um país dependente das traduções. No mercado editorial americano as traduções de livros em português comparecem mais como enfeites, elementos de novidade e de diversificação ‘politicamente correta’, do que qualquer outra coisa”, comenta a tradutora Denise Bottmann. Diante disso, considera-se até natural que a atenção esteja voltada para lá. No entanto, desviar os olhos para outras lugares pode significar inebriar-se, por exemplo, com a poesia polonesa do século 19 e 20 que ainda é pouco traduzida no Brasil (a prosa tem começado a ser publicada nos últimos anos).

Cobrança

Embriagar-se com a obra é condição sine qua non para a boa tradução, dizem críticos literários de obras traduzidas, profissão, aliás que não tem formação específica no Brasil. O tradutor é quem, algumas vezes, faz o papel de crítico. Mas, o que, afinal, eles esperam e cobram do tradutor? “A tradução costuma ser uma vítima de nosso próprio senso comum. Por alguma razão, costumamos querer que a tradução – uma prática discursiva que se dá nas mesmas condições de possibilidade e nos mesmos limites de qualquer outra prática humana – realize idealmente aquilo que nenhuma prática discursiva é capaz de fazer, a saber: ser o resultado do esforço intelectual, técnico e criativo de um sujeito que, no entanto, teria de se eximir de sua condição de sujeito para, idealmente, não deixar qualquer marca no processo de elaboração no discurso que constitui a tradução”, resume Maurício Cardozo. O poeta e teórico francês Charles Baudelaire tem estudos no campo da crítica que servem até hoje de base para teses. Além dos versos que fundaram a tradição moderna em poesia e das incansáveis traduções e análises da obra de Edgar Allan Poe, que “definiram a leitura de Poe na Europa e, de certa forma, mesmo nos Estados Unidos”, lembra Sandra Stroparo.

E não foi Baudelaire quem sugeriu embriagar-se de vinho, poesia ou virtude?

Porém, num conto que se passa dentro de uma penitenciária de alta segurança no interior da Indiana, nos EUA, os presos usam outros artifícios menos nobres para suportar a realidade. O tradutor Roberto Muggiati perdeu-se no dicionário de gírias para descobrir o significado do título do conto “In the Ozone”, uma expressão que corresponde a drogado, chapado.

Mas, os textos mais difíceis que Muggiati traduziu foram contos policiais contemporâneos das antologias anuais das melhores mystery stories. “A competição é tão acirrada e os jovens autores se esmeram tanto em inovações de linguagem que você tem de suar para fazer jus ao preço de cada lauda”, pontua Muggiati.


Quando traduziu o linguajar de lenhadores broncos das montanhas canadenses, no Vale do Neslolo, adivinha? Como bom tradutor, que precisa estar inteirado da obra, a primeira providência foi entrar no Google para saber a localização do Vale. Não achou. Concluiu que é um nome inventado. Há 50 anos no ofício de tradutor já deve estar acostumado a se perder nas profundezas da reinvenção... 
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O que vem por aí
Confira algumas obras traduzidas por paranaenses que devem ser lançadas em 2014:
• Denise Bottmann está terminando de traduzir o romance da inglesa Jhumpa Lahiri, The Lowland, que deve ser lançado pelo selo Biblioteca Azul, da editora Globo Livros, ainda no primeiro semestre de 2014.
• Caetano Galindo tem que entregar Finn’s Hotel, do irlandês James Joyce, agora no começo do ano, e The Pale King, do americano David Foster Wallace, até o fim de 2014. Os dois trabalhos são para a Companhia das Letras.
• No começo de 2014, a Iluminuras lança uma tradução revisada das Iluminuras – Gravuras Coloridas (Iluminations – Painted Plates), do poeta francês Arthur Rimbaud, traduzida por Rodrigo Garcia Lopes em parceria com Maurício Arruda Mendonça em 1994. Rodrigo também tem planos de lançar as traduções de epigramas do poeta latino Marcial e de poemas selecionados do poeta modernista francês Guillaume Appolinaire.
• Sandra Stroparo está começando a traduzir as cartas do escritor francês Gustave Flaubert para a precursora do feminismo George Sand. A tradução sai pela editora Arte e Letra.
• Estão no prelo e saem ainda no início deste ano as Elegias de Sexto Propércio (poeta romano do século 1 a.C.), pela editora Autêntica, e o Paraíso Reconquistado, do inglês John Milton (uma tradução poética a dez mãos), pela Editora de Cultura. As traduções são de Guilherme Gontijo, que também trabalha na finalização da tese de doutorado, envolvendo a tradução das Odes de Horácio, um dos maiores poetas da Roma Antiga.
• Christian Schwartz entregou no final do ano passado para a Companhia das Letras A Long Way Down, terceiro livro do inglês Nick Hornby que ele traduz para a editora. Tem outras três traduções encomendadas, uma delas o tijolaço de mais de 500 páginas Middlesex, do americano Jeffrey Eugenides. Para a Record, está traduzindo o novo título do inglês Jonathan Coe, Expo 58. Em seguida, faz para o selo Penguin-Companhia das Letras uma nova tradução de Frankenstein, escrito pela britânica Mary Shelley.
• A Viagem ao Harz, do poeta romântico alemão Heinrich Heine, está em fase final de produção e chega às livrarias pela Editora 34 ainda em janeiro, traduzida por Mauricio Mendonça Cardozo, que também está no meio do processo de tradução da obra Poesia e Verdade, de Goethe. A publicação sai pela editora da Unesp também em 2014.
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Relação vantajosa

Tradutor de prosa, Christian Schwartz se arriscou ao verter para o português as letras de Lou Reed.
[Foto: Daniel Derevecki]






















Tradutor, não raro, é escritor. Dos dez entrevistados, seis têm livros autorais publicados. E, observando os comentários sobre como o trabalho de tradução reverbera na produção autoral, fica nítida a relação simbiótica mantida por esses atores que jogam com dois personagens, driblando palavras e construindo estratégias para transportar o leitor ao local do encontro dos significados.

Caetano Galindo é autor da coletânea de histórias curtas Ensaio, sobre o entendimento humano, com a qual venceu o Prêmio Paraná de Literatura na categoria contos (Prêmio Newton Sampaio). 
Rodrigo Garcia Lopes: “tradutor de poesia
precisa ser, de algum modo, poeta.
[Foto: 
Elisabete Ghislen]
“Como se costuma dizer, o tradutor é uma ponte entre culturas, literaturas. Acredito na tradução como exercício de alteridade, e é natural que esta atividade acabe contaminando minha poesia, e minha poesia acabe, por sua vez, influenciando os textos que traduzo. Nós estamos ‘traduzindo’ o tempo todo, afinal, muitas vezes sem nos dar conta disso. Tanto o tradutor quanto o detetive precisa o tempo todo estar decidindo entre as pistas falsas e verdadeiras, tomando decisões, correndo riscos. Precisa reunir evidências, examinar informação, o contexto, etc.”

Rodrigo Garcia Lopes faz a analogia em referência ao seu romance policial de estreia na prosa, O Trovador, ambientado no Norte do Paraná.

“Em parte, eu nem separo a produção poética própria da produção tradutória. Sempre traduzi muita poesia, em trabalhos oficiais, por mero interesse na obra. Para mim, reescrever um poema é participar da sua (re) feitura. O tradutor de poesia precisa ser, de algum modo, um poeta – ao menos no aspecto artesanal – para conseguir traduzir. Então, sim, a tradução me influencia por dois modos: por um lado, ela me oferece uma leitura mais minuciosa de escritores que me interessam, me dá a chance de compreender melhor como os outros escrevem/escreveram; por outro, a tradução é em si uma prática poética, que serve como um treino desse artesanato da poesia. Certamente o artesanato não é, em si, a poesia, mas é uma parte fundamental. Por isso, acredito que nenhum tradutor possa dizer que seu trabalho não influencia a criação. O brasa enganosa (com letra minúscula mesmo) tem algumas referências derivadas de tradução, sim. Na verdade, alguns poucos poemas são traduções bem livres de trechos de obras que me interessavam. E a expressão brasa enganosa hoje está num jogo de palavras de uma tradução de uma ode de Horácio que eu fiz (lá faço algo como ‘brasa’ X ‘brisa enganosa’). Eu não lembro mais se primeiro me veio o poema com esse título, e depois usei minha própria ideia na tradução de Horácio, ou se tive a ideia para minha composição a partir da solução tradutória, já que essa imagem não é exatamente a mesma que a de Horácio.” 


[Fonte: www.gazetadopovo.com.br]

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