sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Bernardo Kucinski e a tradução da Vila Vudu

Por Luiz Carlos Azenha

A Vila Vudu é um coletivo de tradutores que distribui textos em listas da internet.

Os textos traduzidos pela Vila Vudu são frequentemente reproduzidos em blogs, por cobrirem uma ampla gama de assuntos internacionais: do Pepe Escobar, no Asia Times Online, ao Tom Dispatch, do blogueiro americano Tom Engelhardt; do Michael Moore ao London Review of Books.

Viomundo já reproduziu muitos destes textos, na confiança de que representavam uma tradução fiel do conteúdo original.

Na semana passada, por exemplo, reproduzimos a tradução de um texto do pacifista Ury Avnery, do Gush Shalom, cujo original está aqui.

No texto, intitulado Dogs of War (Cães de Guerra), Avnery fala da possível reação de colonos que vivem em territórios palestinos ocupados ao reconhecimento de um Estado palestino pelas Nações Unidas.

Tempos depois, no espaço dos comentaristas, surgiu uma observação do professor Bernardo Kucinski, segundo a qual a tradução não era fiel ao texto original e, ao fazer isso, era manifestação de antissemitismo.

Kucinski perguntava sobre o financiamento do Coletivo da Vila Vudu, que assinava a tradução.

Viomundo retirou o texto do ar preventivamente, encaminhou o comentário de Kucinski por e-mail à coordenadora do Vila Vudu, Caia Fittipaldi, e pediu a ela que se manifestasse a respeito.

Eis a resposta:

“Bernardo Kucinski tem alguma razão, mas pouca, no que diz da tradução. Traduções são sempre aventuras arriscadas. Se se der o mesmo texto a traduzir para cem tradutores, haverá cem traduções e, embora todas sejam diferentes entre elas, pode perfeitamente acontecer de nenhuma estar errada.

É verdade que Avnery não escreveu tantas vezes a palavra “judeu” quanto nós escrevemos. Entendemos que ele não precisava escrever, porque não escrevia para leitores brasileiros, ‘educados’ e ‘informados’ pelo Grupo GAFE (Globo-Abril-Folha-Estadão).

Shakespeare usa centenas de vezes a palavra “judeu” em por exemplo, “O Mercador de Veneza” e, se foi acusado de antissemitismo, só o foi depois de a propaganda sionista ter desgraçado os judeus e o mundo.

Também escrevemos mais vezes do que há no original, a expressão “colônias exclusivas para judeus” — pq nos pareceu melhor tradução para “settlements”, do que “assentamentos”, palavra que nada diz e mascara significados relevantes.

No Brasil, quem leia “assentamento”, pensa em assentamentos de sem-terra, improvisados, precários, e não pensa em prédios de muitos andares, com perfeita infraestrutura e condições de conforto que, no Brasil, correspondem a apartamentos de luxo. Então, quem queira fazer-ver os “settlements” que Israel constrói em território ilegalmente ocupado na Palestina, depois de destruir com tratores casas de palestinos que haja nos terrenos, não pode traduzir “settlement” por “assentamento” e DEVE traduzir por “colônias exclusivas para judeus”.

Não vemos que haja qualquer antissemitismo em pôr à vista significados que não apareciam à vista, no texto de Avnery, mas lá estavam, pressupostos sabidos. Importante, sempre, é não tergiversar e traduzir para fazer-ver, não para mascarar.

Evidentemente, há antissionismo, mas não há qualquer antissemitismo, em tirar a peneira da frente do sol.

Algum incômodo que o adjetivo “judeu” cause, associado a práticas terroristas, é efeito hipnótico que a propaganda sionista sempre buscou empenhadamente, e que a propaganda fascistizante dos governos de Israel também procura. Mas é preciso, em nome da democracia e da civilização resistir à propaganda sionista.

Grandes judeus, sábios, bem informados, intelectuais planetários lúcidos e progressistas, como, dentre muitos outros Hosbawm, já escreveram sobre tudo isso.

O que Hobsbawm escreveu pode ser lido, em português, em tradução desse Coletivo de Tradutores Vila Vudu em artigo de 4/3/2009, em centenas de blogs brasileiros, dentre os quais http://sonia-pordentrodahistoria.blogspot.com/:

“Desde 1945 os judeus, dentro e fora de Israel, beneficiaram-se muito da má consciência de um mundo ocidental que se recusou a receber migrantes judeus nos anos 30, antes de o mesmo ocidente ou cometer genocídio ou não lutar contra ele.

Quanto dessa má consciência, que conseguiu eliminar virtualmente o antissemitismo ocidental por 60 anos e produziu uma era de ouro para a diáspora dos judeus, sobrevive hoje?

A cada nova aventura militar, como em Gaza e no Líbano, mais essa solução de conciliação vai-se tornando difícil e mais se reforça o poder da direita israelense e dos colonos judeus fanáticos da Cisjordânia que jamais desejaram qualquer solução de conciliação.

Como já aconteceu na guerra do Líbano em 2006, o massacre de Gaza torna ainda mais sombrio o futuro de Israel. E também tornou mais sombrio o futuro dos nove milhões de judeus da diáspora. Não sejamos hipócritas: criticar Israel não implica qualquer antissemitismo.”

Fazemos nossas as palavras de Hobsbawm. Não sejamos hipócritas.
[assina] Coletivo de Tradutores Vila Vudu

PS – Esse Coletivo de Tradutores é grupo de cidadãos, tradutores voluntários, que se autofinancia e não recebe dinheiro de ninguém, nem de universidade, nem de partido político, nem de empresa jornalística.

Nossas traduções são produzidas por tradutores voluntários, distribuídas gratuitamente e publicadas por exclusiva decisão e sob exclusiva responsabilidade de quem as publica. Corremos conscientemente, inclusive, o risco, assumido, de nossas traduções serem corrigidas — e portanto, alteradas — por quem as reproduza. Nossas traduções são manifestação da voz dos tradutores. E ninguém que escolha falar livremente aos muitos pode pressupor que esteja protegido de todos os riscos.

Cuidamos, apenas, de preservar os nomes individuais dos tradutores, exclusivamente porque são cidadãos comuns, que não gozam de qualquer proteção, seja pela notoriedade midiática, seja de partido ou instituição política ou governamental.
*****
Para além da polêmica sobre a fidelidade da tradução ao original, o Viomundo considera essencial o princípio de que os tradutores são responsáveis pelos textos traduzidos.

Se o Coletivo da Vila Vudu considera que não é assim, mantemos nossa decisão de retirar a tradução do site.

Concordamos que traduzir é uma tarefa difícil. Nossas próprias traduções, que não são poucas, frequentemente são corrigidas por leitores e comentaristas. Considerando o “efeito Google”, incorporamos as mudanças com rapidez, para impedir que nossos erros sejam replicados.

Concordamos com a proposta de Bernardo Kucinski de que é preciso debater abertamente o assunto.

Para efeito de polemizar, o texto original de Ury Avnery se encontra aqui e a tradução da Vila Vudu se encontra aqui ou aqui ou aqui ou aqui.

Bom debate a todos!

PS do Viomundo: Numa primeira leitura dos comentários, apesar do lamento de muitos sobre a não publicação futura de textos da Vila Vudu, consideramos adequada a nossa decisão. Este site é feito por quatro pessoas (uma delas cuidando de mantê-lo no ar), não é dedicação exclusiva de nenhum de nós e não temos capacitação profissional adequada para confrontar originais com traduções com a perícia necessária para evitar erros, omissões e interpretações equivocadas. Portanto, a partir de agora, só traduções que tragam claramente o nome do tradutor, para que ele responda plenamente pelo conteúdo do trabalho. Quanto às críticas específicas de Bernardo Kucinski à tradução do Coletivo da Vila Vudu, achamos que seria mais justo que ele as fizesse depois de ler e considerar a resposta de Caia Fittipaldi. A Conceição Lemes diz que isso será feito nas próximas horas. Obrigado a todos pela participação! 

[Fonte: www.viomundo.com.br]

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