Certa vez ouvi de um luminar da ultramegapós-modernidade dos estudos linguísticos uma pérola sobre o que é a norma culta. Disse o gênio que a norma culta de hoje é o que se lê nos principais jornais do país. O indivíduo só não disse por que não usa em seus trabalhos o que se lê nos principais jornais do país, ou seja, o que ele diz que é a norma culta de hoje.
O mais interessante é que muitas questões dos mais importantes vestibulares se baseiam justamente em textos jornalísticos, ou melhor, nos problemas dos textos jornalísticos. Sempre se pede que se faça alguma "correção" nos excertos destacados, seja no que diz respeito à mensagem em si, seja no que diz respeito a aspectos gramaticais. Contradição, não?
Posto isso, vamos a um belo exemplo do que não se deve imitar quando se quer trafegar pelo padrão culto da língua. De onde vou tirar o exemplo? De um título jornalístico, que ninguém é de ferro! Lá vai: "Júnior César diz que Cuca o explicou sobre reserva por mensagem". A falta de conhecimentos gramaticais básicos e a falta de leitura dos clássicos produzem esse tipo de inadequação linguística.
A que variedade de língua pertence a sintaxe do título citado? À culta? À popular? A nenhuma delas. O xis do problema está no uso indevido do pronome oblíquo "o". Quando se diz que alguém "o explica", diz-se que alguém explica algo, que pode ser um fenômeno, um texto etc.: "O professor explicou o problema" = "O professor o explicou"; "O poeta explicou o verso" = "O poeta o explicou"; "O astrônomo explicou o fenômeno" = "O astrônomo o explicou".
Como se sabe -ou como deveria saber-se-, no padrão formal da língua o pronome oblíquo "o" funciona como complemento verbal direto (aquele que não é regido por preposição), seja para substituir coisas ou animais, seja para substituir seres humanos. Vamos lá: "Não conheço você" = "Não o conheço"; "Encontrei o cão" = "Encontrei-o"; "Não admiro esse compositor" = "Não o admiro"; "Não li esse livro" = "Não o li".
Na frase em questão, certamente não se quis dizer que Cuca "explicou Júnior César sobre reserva", já que ninguém explica alguém sobre o que quer que seja. O que se quis dizer é que Cuca explicou A Júnior César sobre a reserva. Se alguém explicasse alguém sobre algo, seria possível dizer "Cuca o explicou sobre tal coisa", mas, como isso é quase tão "normal" quanto algo como "A na que semana vem subir temperatura vai", parece melhor pensar em outra construção.
O caro leitor já sabe como ficaria o título citado se fosse redigido na norma culta? Bastaria trocar o pronome "o" pelo pronome "lhe": "Júnior César diz que Cuca lhe explicou sobre reserva por mensagem". Sim, se Cuca explicou A Júnior César, ou seja, se Cuca explicou A alguém, Cuca lhe explicou. No padrão culto da língua, é o pronome "lhe" que funciona como complemento verbal indireto (aquele que é regido por preposição) da terceira pessoa. Vamos lá: "O livro pertence a você" = "O livro lhe pertence" ou "O livro pertence-lhe"; "Digam ao diretor que este livro pertence a ele" = "Digam-lhe/a ele que este livro lhe pertence" (ou "que este livro pertence a ele").
O desconhecimento dessa particularidade da sintaxe culta tem produzido outras bobagens semelhantes, como "O médico não o permite ingerir gordura" (na língua culta, "O médico não lhe permite ingerir gordura") ou "O juiz não o concedeu o benefício" (no lugar de "O juiz não lhe concedeu o benefício").
E é bom não confundir alhos com bugalhos! Frases como "O juiz não o convenceu a depor" ou "O pai não o autorizou a viajar" são mais do que cultas, já que, nesse caso, "autorizar" e "convencer" não regem preposição (alguém convence alguém; alguém autoriza alguém). É isso.
Pasquale Cipro Neto
[Fonte: www.folha.com.br]
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