No vídeo publicado no YouTube "Coisas que o Mercado Fala", dentro de uma
loja, uma cliente afirma, ao pagar a conta, que irá "se alavancar muito
hoje" (ou seja, vai contrair dívidas) e que um par de sapatos "está
dando compra" (o preço caiu).
Trata-se de um esquete encomendado pela equipe da corretora de
investimentos XP em que operadores e analistas de Bolsas de Valores usam
palavras típicas do mercado financeiro para situações cotidianas.
Um dos analistas da empresa, William Castro Alves, 29, conta que a ideia
era "fazer um vídeo engraçado e legal para que as pessoas ficassem
curiosas e motivadas a entender mais sobre o mercado de capitais".
Alves afirma que, às vezes, palavras rebuscadas para conceitos simples afastam potenciais investidores.
Ele exemplifica com a sigla em inglês ROI ("return on investment", em
português, retorno sobre investimentos) para se referir a quanto alguém
está ganhando de dinheiro em relação ao capital investido.
A criação de palavras ou expressões dentro de um grupo de trabalhadores
"está aumentando", diz a professora Leila Barbara, da PUC-SP, que dá
aulas no programa de pós-graduação em linguística aplicada.
Barbara aponta um "suspeito": a tecnologia. "Antes, conversava-se com
quem estava perto. Hoje, fala-se com quem quiser no mundo. Todos querem
facilitar o diálogo com pessoas de outros países. Então, imita-se um
pouco para, depois, usar a palavra por aí."
"Essas palavras têm praticidade. É uma forma de dizer algo mais
rapidamente", diz Renê Coppe Pimentel, coordenador do MBA de finanças da
Fipecafi (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e
Financeiras). Mas o uso exagerado, ele diz, soa forçado e "tem gente que
faz isso, sim".
Os trabalhadores de finanças não são exceção: no mundo do trabalho, cada
segmento tem suas expressões próprias que não fazem sentido fora dos
círculos de profissionais, diz a professora titular da faculdade de
letras da USP Ieda Maria Alves.
IDENTIDADE
Diego Bitencourt Contezini, 27, sócio da Informant, um laboratório de
desenvolvimento de softwares, diz que usa termos em inglês, em muitos
casos, "por comodismo mesmo, mesmo que existam equivalentes em
português; é feio, mas acontece."
Ele explica que muitos termos têm origem em metodologias e novas
tecnologias que são batizadas em inglês e depois entram no cotidiano.
Contezini dá o exemplo do termo "sprint" que, em inglês, originalmente
se refere a uma corrida de velocidade, mas que, por causa de uma
metodologia comum entre profissionais de TI cujo nome é "scrum", é
empregado no sentido de um espaço de tempo de duração variável.
"A conversa entre duas pessoas da área da TI é ininteligível para quem é
de fora. É hermético de propósito", diz Tales Andreassi, professor da
FGV (Fundação Getulio Vargas) e colunista da Folha. Ele considera
que profissionais de uma determinada área têm esse hábito para criar
uma identidade e, às vezes, proteger conhecimento.
É a mesma motivação para o surgimento de gírias entre adolescentes, afirma a professora Barbara.
"Eles [adolescentes] não sabem por que inventam gírias, mas é para
buscar identidade, e isso é importante. Quem não usa [novos termos] quer
ser enxergado como pessoa culta ou tem medo de ser visto como
ignorante, mas é melhor se acostumar."
DE LÁ PARA CÁ
Os especialistas apontam alguns mecanismos pelos quais palavras ou
expressões são criadas. O mais comum chama-se "decalque", que é uma
adaptação de outra língua -geralmente, do inglês.
O mais frequente, aponta Barbara, é "transformar palavras [de outro idioma] em verbo, sempre em primeira conjugação".
Ricardo Barcelos, 37, sócio da consultoria de RH Havik e "headhunter"
(recrutador e selecionador) conta que usa um verbo assim: "huntear".
Significa buscar um profissional que já está empregado em uma
organização. A origem é justamente a expressão usada para designar a
profissão dele.
Ele lista outros termos que nasceram da mesma maneira, como "performar".
"É assim que a língua muda seu vocabulário e a própria sintaxe", afirma a
professora da PUC, que diz achar esses decalques "divertidos".
Alves também afirma que essas palavras tendem a ser incorporadas pelo português, principalmente quando não há "concorrentes".
Ela diz que, por esse processo, também se criam "monstrinhos". E usa
como exemplo "experienciar", do inglês "to experience", que já possui um
equivalente em português: experimentar.
Não são somente decalques ou neologismos as palavras que entram na moda no mundo corporativo.
Expressões em português passam a ser usadas para designar conceitos diferentes.
Muitas vezes, afirma a professora Alves, é uma maneira de atenuar uma relação.
"'Colaborador' é uma denominação mais amigável do que 'meu empregado', pois não marca tanto a relação de superioridade."
Ela diz que a tendência é semelhante à de chamar um surdo de portador de deficiência auditiva.
"Trata-se de uma sinalização de que o modelo de gestão mudou. É o que
acontece quando dizem que [uma empresa] não tem chefes, mas, sim,
líderes. O líder tem que cuidar das pessoas", afirma o professor da FGV
João Baptista Brandão.
Brandão adiciona, no entanto, que algumas empresas que usam essas
palavras corriqueiramente "claramente não têm práticas condizentes [com
esses conceitos], e isso acaba pegando até mal, porque os trabalhadores
não são burros e percebem a falta de sintonia com o discurso".
INVENTA AÍ
"A gente cria expressões ou nomes para designar algumas ideias que
queremos inspirar", admite Lucas Liedke, 30, diretor do núcleo de
tendências da Box 1824, uma empresa especializada em pesquisa de
comportamento para o mercado publicitário.
Ele conta que o propósito da Box 1824 é ir atrás de hábitos, padrões e
ideias ainda pouco difundidos que, muitas vezes, ainda não receberam um
nome. Por isso, eles mesmos os batizam.
Para achar palavras ou expressões adequadas, diz Liedke, eles fazem um "brainstorm" na agência.
Ele diz ter criado a expressão "consumo do conhecimento" para serviços
que entregam dados junto com um produto (por exemplo, as recomendações
de títulos que um cliente da livraria digital Amazon recebe depois de
comprar lá).
"Muitas vezes são nomes em inglês", afirma Liedke.
A língua estrangeira é usada cotidianamente na empresa muitas vezes com adaptações às necessidades dos publicitários.
Ao estudar o consumo de um novo produto, eles separam potenciais
clientes entre os "mainstream" (corrente principal), que são a massa de
potenciais compradores, e os "alfa" ou "early adopters", que são os
pioneiros no uso da novidade.
"Em marketing, propaganda e outras áreas relacionadas é bem comum haver
criação de termos", diz Marcelo Pontes, professor da ESPM.
Ele afirma que nem só conceitos inéditos ganham neologismos, mas, às
vezes, "algo velho ganha uma roupagem nova". Ele dá como exemplo
"storytelling" (contação de historias em inglês). "Não que seja bobagem,
mas não é uma novidade. O nome e a inserção em novos segmentos, sim,
são novos", diz.
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Conheça expressões do 'corporativês'
DECALQUES DO INGLÊS
Brifar
Vem de "briefing", que é explicar um projeto ou uma decisão a alguém
Empoderar
"To empower" significa dar mais poder ou opções a clientes ou funcionários
Experenciar
De "to experience"; trata-se de experimentar algo
Fupar
Corruptela de "follow up" (dar segmento em inglês), significa acompanhar uma decisão ou uma medida ou cobrar alguém
Suportar
Usado como sinônimo de dar suporte técnico, que veio de "to support" (dar apoio), aparece como prestar auxílio a uma operação, e não como aguentar
Huntear
Busca feita por headhunters (daí a origem) que tentam 'roubar' profissionais já empregados em outras empresas
Planta
Aparece no sentido de fábrica ou local físico de uma empresa
Printar
De " to print"; imprimir um documento
Performar
De "performance", significa ter um bom desempenho no trabalho
Trackear
Rastrear dados, como a mensuração de cliques em uma página da internet
Gamificar
Usar dinâmicas de jogos para ações, projetos ou campanhas
Viralizar
Disseminação de uma peça publicitária pela internet
Baseado
Empregado no sentido de localização geográfica
TÁ NA MODA
Afegão médio
Consumidor 'comum'
Agregar valor
Adicionar elementos ao serviço ou produto e, assim, cobrar mais por ele ou se diferenciar dos concorrentes
Alinhar
Sinônimo de combinar
Colaborador
Funcionário, empregado
Disruptivo
Novidade que muda a forma como algo é consumido e revoluciona o mercado
Ecossistema
Conjunto de empresas e produtos de um determinado setor
Entregar resultados
Atingir as metas
Evangelista
De uma marca; profissionais da empresa ou consumidores fiéis que se propõem a divulgá-la
Facilitador do aprendizado
Orientador ou profissional que transmite conhecimento
Focar
Centrar atenções e esforços em um produto
Líder
Sinônimo de chefe
Habilidades comportamentais
Atitude profissional
Proposta de valor
Vantagem que um produto tem frente a rivais
Talentos humanos ou time
Sinônimo de equipe
PORTUGUÊS COM INGLÊS
Advocate
defensor de uma causa; consumidores que gostam de uma marca e a promovem
Assessment
Avaliação; no mercado de RH, o termo é usado para se referir ao processo em que os recrutadores conferem características dos candidatos a uma vaga
Benchmark
Referência; ver o que outras empresas fazem para copiar ou adaptar
Biz dev
Corruptela, em inglês, para "business developer" (desenvolvedor de negócios)
Bottom-up
De baixo para cima; uma mudança que acontece por ação dos trabalhadores de nível hierárquico menor
Top-down
De cima pra baixo; o contrário: uma decisão dos chefes que muda o cotidiano dos trabalhadores
CRM (Customer Relashionship Management)
Ou gestão de relacionamento com o cliente; uso de informações sobre um consumidor para fazer ofertas específicas para ele
Engajar o sponsor
Engajar o patrocinador; fazer com que o anunciante ou quem pode investir em uma ação publicitária se entusiasme pela ideia
Quais foram os learnings?
Os aprendizados gerados por uma situação
Terminar os 'to-dos'
Terminar as tarefas
Supply chain
Cadeia de suprimentos; fornecedores de um produto ou serviço
Talent manager
Gerente de talentos; profissional do setor de RH
Resolver os "pains" do consumidor
Apresentar alguma solução para um problema, uma 'dor', na forma como o produto é usado
User-generated content
Conteúdo criado por usuários; produtos ou serviços desenvolvidos a partir de ideias dos clientes
Pipeline
De oleoduto em inglês; processo seletivo para escolher uma empresa na qual investir ou um profissional para contratar
Turnover
Tem vários sentidos em inglês, o mais comum é giro; em RH, usa-se para dizer troca de funcionários da empresa
Reason why
Razão de ser; em publicidade, usa-se para dizer qual o motivo de existência de uma campanha e para justificar promessas; por exemplo: o carro x é mais rápido (promessa) porque o motor é mais potente ("reason why")
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Brifar
Vem de "briefing", que é explicar um projeto ou uma decisão a alguém
Empoderar
"To empower" significa dar mais poder ou opções a clientes ou funcionários
Experenciar
De "to experience"; trata-se de experimentar algo
Fupar
Corruptela de "follow up" (dar segmento em inglês), significa acompanhar uma decisão ou uma medida ou cobrar alguém
Suportar
Usado como sinônimo de dar suporte técnico, que veio de "to support" (dar apoio), aparece como prestar auxílio a uma operação, e não como aguentar
Huntear
Busca feita por headhunters (daí a origem) que tentam 'roubar' profissionais já empregados em outras empresas
Planta
Aparece no sentido de fábrica ou local físico de uma empresa
Printar
De " to print"; imprimir um documento
Performar
De "performance", significa ter um bom desempenho no trabalho
Trackear
Rastrear dados, como a mensuração de cliques em uma página da internet
Gamificar
Usar dinâmicas de jogos para ações, projetos ou campanhas
Viralizar
Disseminação de uma peça publicitária pela internet
Baseado
Empregado no sentido de localização geográfica
TÁ NA MODA
Afegão médio
Consumidor 'comum'
Agregar valor
Adicionar elementos ao serviço ou produto e, assim, cobrar mais por ele ou se diferenciar dos concorrentes
Alinhar
Sinônimo de combinar
Colaborador
Funcionário, empregado
Disruptivo
Novidade que muda a forma como algo é consumido e revoluciona o mercado
Ecossistema
Conjunto de empresas e produtos de um determinado setor
Entregar resultados
Atingir as metas
Evangelista
De uma marca; profissionais da empresa ou consumidores fiéis que se propõem a divulgá-la
Facilitador do aprendizado
Orientador ou profissional que transmite conhecimento
Focar
Centrar atenções e esforços em um produto
Líder
Sinônimo de chefe
Habilidades comportamentais
Atitude profissional
Proposta de valor
Vantagem que um produto tem frente a rivais
Talentos humanos ou time
Sinônimo de equipe
PORTUGUÊS COM INGLÊS
Advocate
defensor de uma causa; consumidores que gostam de uma marca e a promovem
Assessment
Avaliação; no mercado de RH, o termo é usado para se referir ao processo em que os recrutadores conferem características dos candidatos a uma vaga
Benchmark
Referência; ver o que outras empresas fazem para copiar ou adaptar
Biz dev
Corruptela, em inglês, para "business developer" (desenvolvedor de negócios)
Bottom-up
De baixo para cima; uma mudança que acontece por ação dos trabalhadores de nível hierárquico menor
Top-down
De cima pra baixo; o contrário: uma decisão dos chefes que muda o cotidiano dos trabalhadores
CRM (Customer Relashionship Management)
Ou gestão de relacionamento com o cliente; uso de informações sobre um consumidor para fazer ofertas específicas para ele
Engajar o sponsor
Engajar o patrocinador; fazer com que o anunciante ou quem pode investir em uma ação publicitária se entusiasme pela ideia
Quais foram os learnings?
Os aprendizados gerados por uma situação
Terminar os 'to-dos'
Terminar as tarefas
Supply chain
Cadeia de suprimentos; fornecedores de um produto ou serviço
Talent manager
Gerente de talentos; profissional do setor de RH
Resolver os "pains" do consumidor
Apresentar alguma solução para um problema, uma 'dor', na forma como o produto é usado
User-generated content
Conteúdo criado por usuários; produtos ou serviços desenvolvidos a partir de ideias dos clientes
Pipeline
De oleoduto em inglês; processo seletivo para escolher uma empresa na qual investir ou um profissional para contratar
Turnover
Tem vários sentidos em inglês, o mais comum é giro; em RH, usa-se para dizer troca de funcionários da empresa
Reason why
Razão de ser; em publicidade, usa-se para dizer qual o motivo de existência de uma campanha e para justificar promessas; por exemplo: o carro x é mais rápido (promessa) porque o motor é mais potente ("reason why")
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Análise: Hermético e postiço, jargão incentiva 'espírito de corpo'
Por THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Na maioria dos textos produzidos no universo corporativo, vê-se um
registro muito particular da língua, nem sempre compreensível aos "não
iniciados". É o que se pode chamar de "jargão corporativo", uma
linguagem hoje dominada por grande quantidade de anglicismos e por
decalques do inglês -ou ingênuas traduções literais.
O termo "jargão", que em sua origem quer dizer "fala ininteligível",
guarda certa marca pejorativa, fruto de sua antiga associação ao
pedantismo -vale dizer que o próprio termo "pedante" faz alusão, entre
outros elementos, ao uso da linguagem empolada que faziam certos
educadores do passado.
Embora os jargões sejam coisa muito antiga, foi nos séculos 19 e 20 que
proliferaram na Europa, fruto de uma maior divisão do trabalho nas
sociedades industriais.
Na época, já figuravam entre as suas características o uso de termos de
línguas estrangeiras como sinal de prestígio e o emprego de metáforas e
eufemismos, exatamente como vemos hoje.
Os jargões são alvo constante de crítica não só por abrigarem muitas
expressões de outras línguas, o que lhes confere um ar postiço e
hermético, como por seu viés pretensioso.
A crítica a esse tipo de linguagem tem fundamento na preocupação com a
"pureza" do idioma e com a perda de identidade cultural, opinião que,
para outros, revela traços de xenofobia.
Essa é uma discussão que não deve chegar ao fim tão cedo, mas é fato que
o jargão tem claras funções simbólicas: por um lado, visa a incentivar o
"espírito de corpo", o que deve justificar o empenho das empresas em
cultivá-lo (até para camuflar as relações entre patrão e empregado), e,
por outro, promove a inclusão de uns e a exclusão de outros, além, é
claro, de impressionar os neófitos.
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO é consultora de língua portuguesa do Grupo Folha-UOL.
[Editoria de Arte/Folhapress - fonte: www.folha.com.br]
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