domingo, 24 de março de 2013

Excesso de jargões toma conta da vida corporativa

Por FELIPE GUTIERREZ

No vídeo publicado no YouTube "Coisas que o Mercado Fala", dentro de uma loja, uma cliente afirma, ao pagar a conta, que irá "se alavancar muito hoje" (ou seja, vai contrair dívidas) e que um par de sapatos "está dando compra" (o preço caiu).

Trata-se de um esquete encomendado pela equipe da corretora de investimentos XP em que operadores e analistas de Bolsas de Valores usam palavras típicas do mercado financeiro para situações cotidianas.

Um dos analistas da empresa, William Castro Alves, 29, conta que a ideia era "fazer um vídeo engraçado e legal para que as pessoas ficassem curiosas e motivadas a entender mais sobre o mercado de capitais".

Alves afirma que, às vezes, palavras rebuscadas para conceitos simples afastam potenciais investidores.

Ele exemplifica com a sigla em inglês ROI ("return on investment", em português, retorno sobre investimentos) para se referir a quanto alguém está ganhando de dinheiro em relação ao capital investido.

A criação de palavras ou expressões dentro de um grupo de trabalhadores "está aumentando", diz a professora Leila Barbara, da PUC-SP, que dá aulas no programa de pós-graduação em linguística aplicada.

Barbara aponta um "suspeito": a tecnologia. "Antes, conversava-se com quem estava perto. Hoje, fala-se com quem quiser no mundo. Todos querem facilitar o diálogo com pessoas de outros países. Então, imita-se um pouco para, depois, usar a palavra por aí."

"Essas palavras têm praticidade. É uma forma de dizer algo mais rapidamente", diz Renê Coppe Pimentel, coordenador do MBA de finanças da Fipecafi (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras). Mas o uso exagerado, ele diz, soa forçado e "tem gente que faz isso, sim". 

Os trabalhadores de finanças não são exceção: no mundo do trabalho, cada segmento tem suas expressões próprias que não fazem sentido fora dos círculos de profissionais, diz a professora titular da faculdade de letras da USP Ieda Maria Alves.

IDENTIDADE

Diego Bitencourt Contezini, 27, sócio da Informant, um laboratório de desenvolvimento de softwares, diz que usa termos em inglês, em muitos casos, "por comodismo mesmo, mesmo que existam equivalentes em português; é feio, mas acontece."

Ele explica que muitos termos têm origem em metodologias e novas tecnologias que são batizadas em inglês e depois entram no cotidiano.

Contezini dá o exemplo do termo "sprint" que, em inglês, originalmente se refere a uma corrida de velocidade, mas que, por causa de uma metodologia comum entre profissionais de TI cujo nome é "scrum", é empregado no sentido de um espaço de tempo de duração variável.

"A conversa entre duas pessoas da área da TI é ininteligível para quem é de fora. É hermético de propósito", diz Tales Andreassi, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e colunista da Folha. Ele considera que profissionais de uma determinada área têm esse hábito para criar uma identidade e, às vezes, proteger conhecimento.

É a mesma motivação para o surgimento de gírias entre adolescentes, afirma a professora Barbara.

"Eles [adolescentes] não sabem por que inventam gírias, mas é para buscar identidade, e isso é importante. Quem não usa [novos termos] quer ser enxergado como pessoa culta ou tem medo de ser visto como ignorante, mas é melhor se acostumar."

DE LÁ PARA CÁ

Os especialistas apontam alguns mecanismos pelos quais palavras ou expressões são criadas. O mais comum chama-se "decalque", que é uma adaptação de outra língua -geralmente, do inglês.

O mais frequente, aponta Barbara, é "transformar palavras [de outro idioma] em verbo, sempre em primeira conjugação".

Ricardo Barcelos, 37, sócio da consultoria de RH Havik e "headhunter" (recrutador e selecionador) conta que usa um verbo assim: "huntear". Significa buscar um profissional que já está empregado em uma organização. A origem é justamente a expressão usada para designar a profissão dele.

Ele lista outros termos que nasceram da mesma maneira, como "performar".

"É assim que a língua muda seu vocabulário e a própria sintaxe", afirma a professora da PUC, que diz achar esses decalques "divertidos".

Alves também afirma que essas palavras tendem a ser incorporadas pelo português, principalmente quando não há "concorrentes".

Ela diz que, por esse processo, também se criam "monstrinhos". E usa como exemplo "experienciar", do inglês "to experience", que já possui um equivalente em português: experimentar.

Não são somente decalques ou neologismos as palavras que entram na moda no mundo corporativo.
Expressões em português passam a ser usadas para designar conceitos diferentes.

Muitas vezes, afirma a professora Alves, é uma maneira de atenuar uma relação.

"'Colaborador' é uma denominação mais amigável do que 'meu empregado', pois não marca tanto a relação de superioridade."

Ela diz que a tendência é semelhante à de chamar um surdo de portador de deficiência auditiva.

"Trata-se de uma sinalização de que o modelo de gestão mudou. É o que acontece quando dizem que [uma empresa] não tem chefes, mas, sim, líderes. O líder tem que cuidar das pessoas", afirma o professor da FGV João Baptista Brandão.

Brandão adiciona, no entanto, que algumas empresas que usam essas palavras corriqueiramente "claramente não têm práticas condizentes [com esses conceitos], e isso acaba pegando até mal, porque os trabalhadores não são burros e percebem a falta de sintonia com o discurso".

INVENTA AÍ

"A gente cria expressões ou nomes para designar algumas ideias que queremos inspirar", admite Lucas Liedke, 30, diretor do núcleo de tendências da Box 1824, uma empresa especializada em pesquisa de comportamento para o mercado publicitário.

Ele conta que o propósito da Box 1824 é ir atrás de hábitos, padrões e ideias ainda pouco difundidos que, muitas vezes, ainda não receberam um nome. Por isso, eles mesmos os batizam.

Para achar palavras ou expressões adequadas, diz Liedke, eles fazem um "brainstorm" na agência.

Ele diz ter criado a expressão "consumo do conhecimento" para serviços que entregam dados junto com um produto (por exemplo, as recomendações de títulos que um cliente da livraria digital Amazon recebe depois de comprar lá).

"Muitas vezes são nomes em inglês", afirma Liedke.

A língua estrangeira é usada cotidianamente na empresa muitas vezes com adaptações às necessidades dos publicitários.

Ao estudar o consumo de um novo produto, eles separam potenciais clientes entre os "mainstream" (corrente principal), que são a massa de potenciais compradores, e os "alfa" ou "early adopters", que são os pioneiros no uso da novidade.

"Em marketing, propaganda e outras áreas relacionadas é bem comum haver criação de termos", diz Marcelo Pontes, professor da ESPM.

Ele afirma que nem só conceitos inéditos ganham neologismos, mas, às vezes, "algo velho ganha uma roupagem nova". Ele dá como exemplo "storytelling" (contação de historias em inglês). "Não que seja bobagem, mas não é uma novidade. O nome e a inserção em novos segmentos, sim, são novos", diz. 


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Conheça expressões do 'corporativês'

DECALQUES DO INGLÊS
Brifar
Vem de "briefing", que é explicar um projeto ou uma decisão a alguém

Empoderar
"To empower" significa dar mais poder ou opções a clientes ou funcionários

Experenciar
De "to experience"; trata-se de experimentar algo 

Fupar

Corruptela de "follow up" (dar segmento em inglês), significa acompanhar uma decisão ou uma medida ou cobrar alguém
Suportar
Usado como sinônimo de dar suporte técnico, que veio de "to support" (dar apoio), aparece como prestar auxílio a uma operação, e não como aguentar

Huntear
Busca feita por headhunters (daí a origem) que tentam 'roubar' profissionais já empregados em outras empresas

Planta
Aparece no sentido de fábrica ou local físico de uma empresa

Printar
De " to print"; imprimir um documento

Performar
De "performance", significa ter um bom desempenho no trabalho

Trackear
Rastrear dados, como a mensuração de cliques em uma página da internet

Gamificar
Usar dinâmicas de jogos para ações, projetos ou campanhas

Viralizar
Disseminação de uma peça publicitária pela internet

Baseado
Empregado no sentido de localização geográfica


TÁ NA MODA
Afegão médio
Consumidor 'comum'

Agregar valor
Adicionar elementos ao serviço ou produto e, assim, cobrar mais por ele ou se diferenciar dos concorrentes

Alinhar
Sinônimo de combinar

Colaborador
Funcionário, empregado

Disruptivo
Novidade que muda a forma como algo é consumido e revoluciona o mercado

Ecossistema
Conjunto de empresas e produtos de um determinado setor

Entregar resultados
Atingir as metas

Evangelista
De uma marca; profissionais da empresa ou consumidores fiéis que se propõem a divulgá-la

Facilitador do aprendizado
Orientador ou profissional que transmite conhecimento

Focar
Centrar atenções e esforços em um produto

Líder
Sinônimo de chefe

Habilidades comportamentais
Atitude profissional

Proposta de valor
Vantagem que um produto tem frente a rivais

Talentos humanos ou time
Sinônimo de equipe


PORTUGUÊS COM INGLÊS
Advocate
defensor de uma causa; consumidores que gostam de uma marca e a promovem

Assessment
Avaliação; no mercado de RH, o termo é usado para se referir ao processo em que os recrutadores conferem características dos candidatos a uma vaga

Benchmark
Referência; ver o que outras empresas fazem para copiar ou adaptar

Biz dev
Corruptela, em inglês, para "business developer" (desenvolvedor de negócios)

Bottom-up
De baixo para cima; uma mudança que acontece por ação dos trabalhadores de nível hierárquico menor

Top-down
De cima pra baixo; o contrário: uma decisão dos chefes que muda o cotidiano dos trabalhadores

CRM (Customer Relashionship Management)
Ou gestão de relacionamento com o cliente; uso de informações sobre um consumidor para fazer ofertas específicas para ele

Engajar o sponsor
Engajar o patrocinador; fazer com que o anunciante ou quem pode investir em uma ação publicitária se entusiasme pela ideia

Quais foram os learnings?
Os aprendizados gerados por uma situação

Terminar os 'to-dos'
Terminar as tarefas

Supply chain
Cadeia de suprimentos; fornecedores de um produto ou serviço

Talent manager
Gerente de talentos; profissional do setor de RH

Resolver os "pains" do consumidor
Apresentar alguma solução para um problema, uma 'dor', na forma como o produto é usado

User-generated content
Conteúdo criado por usuários; produtos ou serviços desenvolvidos a partir de ideias dos clientes

Pipeline
De oleoduto em inglês; processo seletivo para escolher uma empresa na qual investir ou um profissional para contratar

Turnover
Tem vários sentidos em inglês, o mais comum é giro; em RH, usa-se para dizer troca de funcionários da empresa

Reason why
Razão de ser; em publicidade, usa-se para dizer qual o motivo de existência de uma campanha e para justificar promessas; por exemplo: o carro x é mais rápido (promessa) porque o motor é mais potente ("reason why") 


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Análise: Hermético e postiço, jargão incentiva 'espírito de corpo'

Por THAÍS NICOLETI DE CAMARGO

Na maioria dos textos produzidos no universo corporativo, vê-se um registro muito particular da língua, nem sempre compreensível aos "não iniciados". É o que se pode chamar de "jargão corporativo", uma linguagem hoje dominada por grande quantidade de anglicismos e por decalques do inglês -ou ingênuas traduções literais.

 O termo "jargão", que em sua origem quer dizer "fala ininteligível", guarda certa marca pejorativa, fruto de sua antiga associação ao pedantismo -vale dizer que o próprio termo "pedante" faz alusão, entre outros elementos, ao uso da linguagem empolada que faziam certos educadores do passado.

Embora os jargões sejam coisa muito antiga, foi nos séculos 19 e 20 que proliferaram na Europa, fruto de uma maior divisão do trabalho nas sociedades industriais.

Na época, já figuravam entre as suas características o uso de termos de línguas estrangeiras como sinal de prestígio e o emprego de metáforas e eufemismos, exatamente como vemos hoje.

Os jargões são alvo constante de crítica não só por abrigarem muitas expressões de outras línguas, o que lhes confere um ar postiço e hermético, como por seu viés pretensioso.

A crítica a esse tipo de linguagem tem fundamento na preocupação com a "pureza" do idioma e com a perda de identidade cultural, opinião que, para outros, revela traços de xenofobia.

Essa é uma discussão que não deve chegar ao fim tão cedo, mas é fato que o jargão tem claras funções simbólicas: por um lado, visa a incentivar o "espírito de corpo", o que deve justificar o empenho das empresas em cultivá-lo (até para camuflar as relações entre patrão e empregado), e, por outro, promove a inclusão de uns e a exclusão de outros, além, é claro, de impressionar os neófitos.

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO é consultora de língua portuguesa do Grupo Folha-UOL. 

[Editoria de Arte/Folhapress - fonte: www.folha.com.br]

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