sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Um repórter entre 250 talheres

Por Andrei Netto 

O pórtico principal do Palácio do Eliseu estava escancarado aos convidados, assediados por fotógrafos embretados no pátio de entrada. No hall do edifício principal, uma pequena multidão de funcionários de luvas brancas acolhia com mordomias os 250 felizardos convocados para o jantar de honra oferecido pela República Francesa à presidente Dilma Rousseff e sua comitiva de ministros, diplomatas e homens de negócios na noite de terça-feira (11/12). Era, sem dúvida, um dia de glória para a presidente e para o Brasil, a primeira vez que um chefe de Estado brasileiro recebia a mais alta honraria do protocolo francês desde que Jacques Chirac convidara Fernando Henrique Cardoso, em 1996.

Fui orientado a atravessar uma sala vazia até ingressar na Salle des Fêtes. Não era a primeira vez que pisava ali. O salão, um dos mais conhecidos ambientes do Palácio do Eliseu, é célebre por acolher as cerimônias de posse de presidentes eleitos. Eu estivera naquele ambiente em 13 de novembro, por exemplo, quando da primeira coletiva do atual presidente da França, o socialista François Gérard Georges Nicolas Hollande. Dessa vez, porém, a atmosfera era de enorme luxo. Os convidados já aguardavam o jantar em uma sala contígua ao salão, também forrada com a tapeçaria vermelha e dourada da peça principal.

Observei ao redor e identifiquei um rosto conhecido. Era o sociólogo Alain Touraine, de 87 anos, que eu entrevistara em duas oportunidades – em junho de 2008 e em maio de 2012. Sabia que ele não me reconheceria, mas ainda assim me apresentei como se fosse ser lembrado: “Boa noite, doutor Touraine.” Trocamos algumas poucas amabilidades antes de comentarmos as notícias do dia, em especial as denúncias feitas à Procuradoria-Geral da República pelo publicitário Marcos Valério sobre os vínculos entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o mensalão. O assunto havia sido manchete do Estado na mesma manhã. Homem de esquerda, Touraine não me surpreendeu: “Lula é indestrutível”, disse, minimizando o impacto das denúncias, antes de ser interrompido por Paulo Paranaguá, jornalista brasileiro do jornal Le Monde.

Dez convidados de honra
Despedi-me. A hora do jantar se aproximava e desejava circular pelo ambiente aveludado em busca de outros contatos. Foi então que entendi todo o esplendor do grande jantar de Estado oferecido ao Brasil e a sua presidente. Em seu nome, a Sala de Festas projetada por Eugène Debressenne e inaugurada às vésperas da mítica Exposição Universal de 1889, resplandecia.

No alto, a iluminação dos grandes lustres de cristal que datam da Restauração – entre 1815 e 1830 – ressaltava o dourado das cúpulas aplainadas, assim como as cores do painel “A República, Salvaguarda da Paz”, obra de Guillaume Dubufe. Vinte e três mesas exibiam nomes de capitais brasileiras. A minha, Goiânia, ficava ao fundo, mas era pelo menos beneficiada por uma visão geral do salão. Sobre todas as mesas, pétalas de rosa espalhadas, como se caídas naturalmente dos três arranjos de centro. Sobre as toalhas, taças de cristal Baccarat com as iniciais RF, prataria e pratos Puiforcat, identificados pelo selo Palais de Elysée, que custam entre € 3 mil e € 6 mil cada.

Circular me permitiu localizar as personalidades convidadas e suas posições no salão. Na mesa principal, a única retangular, estavam, além do casal anfitrião, dez convidados de honra, dos quais quatro brasileiros: Dilma, sua filha, Paula, a presidente da Petrobrás, Graça Foster, e o embaixador do Brasil em Paris, José Maurício Bustani. Assediado pela imprensa em Paris, o ex-presidente Lula não ocuparia seu lugar de honra. Mas havia outras celebridades, como o chef Alain Ducasse e o ex-jogador Raí. 

Presidentes e diretores de grandes empresas, como as francesas Casino, Accor e Total, ou as brasileiras OAS e Andrade Gutierrez, posicionavam-se próximos a líderes políticos.

Fanfare pour le Carrousel Royal
Cumprimentei dois ministros brasileiros: Antonio Patriota, das Relações Exteriores, e Celso Amorim, da Defesa. A mesa do segundo revelava bastante das intenções do Palácio do Eliseu ao oferecer a noite de gala. Nela estavam Jean-Yves Le Drian, ministro da Defesa da França, e Serge Dassault, industrial e presidente de honra da Dassault Aviation, fabricante dos caças Rafale, que a França tenta vender ao Brasil.

Assediado por jornalistas, Serge Dassault se mostrou gentil e transparente. Aos 87 anos e sem papas na língua, parecia se sentir livre para manifestar seu pessimismo quanto às chances do Rafale frente ao F-18 Super Hornet, fabricado pela Boeing. “Não será nesta noite que vamos fechar”, brincou. “Tudo que sabemos é que os americanos estão fazendo um esforço terrível. Não temos os mesmos meios”, disse, reconhecendo uma fraqueza de sua aeronave: “Nossa desvantagem é o euro.”

A essa altura, o jantar gastronômico preparado pelo chef Guillaume Gomez, que assumiu o posto com o novo governo, em maio, se encaminhava para o começo. Passava um pouco das 20h30 quando Dilma apareceu ao fundo, ladeada por Hollande. Nesse momento a Orquestra de Cordas da Guarda Republicana do Palácio do Eliseu, que ao longo da noite executaria obras de Villa-Lobos e Tom Jobim, de Mozart e Schubert, optou por Fanfare pour le Carrousel Royal, partitura do século 17 assinada pelo florentino Lully.

Colados aos assentos
Juntos, os dois líderes subiram ao palco, onde Hollande tomou a palavra. “A senhora é a primeira (mulher) presidente do Brasil, à frente de um dos mais vastos países do mundo, da sexta maior economia do globo, da quinta população. É um orgulho recebê-la”, disse, encerrando sua intervenção com um “cabe a nós moldarmos o mundo de amanhã”, um “Viva a amizade franco-brasileira” e um brinde de champanhe Philipponnat Cuvée 1522, da safra 2003, vinda da reserva presidencial de 15 mil garrafas protegidas por uma porta blindada, não longe do comando do arsenal nuclear do país, situado em um bunker do prédio.

Dilma retribuiu a acolhida com um discurso menos abstrato, que pregava o estreitamento da parceria estratégica dos dois países. “Proponho um brinde ao futuro da parceria e da amizade entre a França e o Brasil”, afirmou, erguendo a taça.

Em gesto de cortesia, ambos passaram pelas mesas centrais, cumprimentando os presentes. Hollande tomou assento no meio de sua mesa, como reza o protocolo francês, ao lado de Dilma. Próximo estava Valérie Trierweiller, sua discreta companheira, vestida com sóbrios e elegantes tons de cinza e preto. Então, batalhões de garçons revezaram-se apresentando as opções aos convidados, que se serviram nas bandejas carregadas de vieiras marinadas e tartare de salmão defumado ao molho de pimenta-rosa, de frango de Bresse gratinado com parmesão e de suflê de batatas com cenoura.

Durante cerca de uma hora, todos ficamos colados a nossos assentos, eu cercado de um ministro e sua mulher, jornalista, um senador, uma militante de ONG, a francesa radicada no Rio Véronique Delormel e, acaso, um diplomata encarregado de temas geopolíticos sensíveis, como Irã e Síria. Aos poucos, alguns convidados começaram a se levantar, minutos após a tábua de queijos e antes da chegada da torta de mousse de chocolate com avelãs que encerraria o jantar – evento inscrito desde 2010 como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco e oferecido a oito líderes mundiais nos últimos seis anos, o último, o presidente italiano Giorgio Napolitano, em 2012.

“Pergunta dura”
Hollande e Dilma voltaram a circular entre as mesas, confraternizando com os ilustres. Nós, jornalistas, fizemos o mesmo. Eu me diverti ao constatar que Jean-Charles Naouri, poderoso diretor-presidente do grupo supermercadista Casino, dono do Grupo Pão de Açúcar, dividia a mesa com Luciano Coutinho, presidente do BNDES. Tomei a seguir alguns instantes de Celso Amorim, que demonstrava satisfação com os rumos da parceria estratégica entre os dois países. Bustani também parecia animado. “Foi muito bom, viu? Essas declarações todas… Tem coisa boa ali. Lê nas entrelinhas”, recomendou, com a habitual elegância.

Já Mantega tinha a expressão fechada. Abordado, comentou sobre sua agenda, mas desconversou quando o questionei sobre como os discursos antiausteridade de Dilma haviam sido recebidos pelo governo francês.

Então Dilma, que continuava a circular pela sala, quebrou a barreira com a imprensa reaproximando-se do jornalista Gianni Carta, representante de CartaCapital, o único repórter ao qual dedicara instantes de atenção em sua chegada. Nesse momento, Véronique, a francesa que se sentara a meu lado, tomou a atenção da presidente, obrigando-a a parar. Sem perceber, Hollande seguiu desacompanhado, foi abordado por um convidado, com quem trocou poucas palavras, e se voltou, descobrindo-se em um breve e inesperado instante de solidão.

Bonsoir, monsieur le président”, disse-lhe eu, estendendo-lhe a mão. Hollande correspondeu com um sorriso amigável, como se eu fosse um velho conhecido. Apresentei-me como jornalista, e ele me interrompeu. “Sim, sim, sim. Foi você quem fez a pergunta na entrevista, muito dura, muito dura. Mas é a regra. Foi dura”, disse ele.

Voz alta
Hollande se referia à entrevista coletiva que antecedera o jantar, quando eu perguntara a Dilma sobre as denúncias de Marcos Valério. Em tom de brincadeira, pedi desculpas pela suposta rudeza. Ele respondeu sério, afirmando que não havia razão para isso.

Evoquei então a ausência do ex-presidente Lula no evento. Hollande respondeu: “Ele está doente... Não está bem.” Eu questionei: “Será?” O presidente abriu mais os olhos e, usando as mãos em um gesto de incerteza, disse: “Não sei!” E então completou, sabendo que eu entenderia a alusão às denúncias: “É sério?” Eu lhe disse não saber se eram verdadeiras, mas confirmei que as informações do Brasil eram graves. Interessado, mas prudente, ele retorquiu: “Não tenho informação a respeito.”

Dilma então se reaproximou, brincando: “Os franceses se dividem em dois grupos: achei um que mora em São Paulo. Todos os outros moram no Rio.”

Como os dois, voltei a navegar pelo salão. Encontrei o ministro Le Drian, a quem inquiri sobre os Rafales, e a seguir deparei com o assessor especial da Presidência Marco Aurélio Garcia, que conversava com Alain Touraine. Me aproximei de ambos, interrompendo-os, e disse ao brasileiro que o sociólogo considerava Lula “indestrutível”. Marco Aurélio comemorou em voz alta: “Ah, muito bem! Mas eu duvido que seu jornal vá publicar essa frase.”
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[Andrei Netto, correspondente do Estado de S.Paulo em Paris]

[Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br]

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