Por Andrei Netto
O pórtico principal do Palácio do Eliseu estava escancarado aos
convidados, assediados por fotógrafos embretados no pátio de entrada. No
hall do edifício principal, uma pequena multidão de funcionários de
luvas brancas acolhia com mordomias os 250 felizardos convocados para o
jantar de honra oferecido pela República Francesa à presidente Dilma
Rousseff e sua comitiva de ministros, diplomatas e homens de negócios na
noite de terça-feira (11/12). Era, sem dúvida, um dia de glória para a
presidente e para o Brasil, a primeira vez que um chefe de Estado
brasileiro recebia a mais alta honraria do protocolo francês desde que
Jacques Chirac convidara Fernando Henrique Cardoso, em 1996.
Fui orientado a atravessar uma sala vazia até ingressar na Salle des
Fêtes. Não era a primeira vez que pisava ali. O salão, um dos mais
conhecidos ambientes do Palácio do Eliseu, é célebre por acolher as
cerimônias de posse de presidentes eleitos. Eu estivera naquele ambiente
em 13 de novembro, por exemplo, quando da primeira coletiva do atual
presidente da França, o socialista François Gérard Georges Nicolas
Hollande. Dessa vez, porém, a atmosfera era de enorme luxo. Os
convidados já aguardavam o jantar em uma sala contígua ao salão, também
forrada com a tapeçaria vermelha e dourada da peça principal.
Observei ao redor e identifiquei um rosto conhecido. Era o sociólogo
Alain Touraine, de 87 anos, que eu entrevistara em duas oportunidades –
em junho de 2008 e em maio de 2012. Sabia que ele não me reconheceria,
mas ainda assim me apresentei como se fosse ser lembrado: “Boa noite,
doutor Touraine.” Trocamos algumas poucas amabilidades antes de
comentarmos as notícias do dia, em especial as denúncias feitas à
Procuradoria-Geral da República pelo publicitário Marcos Valério sobre
os vínculos entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o
mensalão. O assunto havia sido manchete do Estado na mesma
manhã. Homem de esquerda, Touraine não me surpreendeu: “Lula é
indestrutível”, disse, minimizando o impacto das denúncias, antes de ser
interrompido por Paulo Paranaguá, jornalista brasileiro do jornal Le Monde.
Dez convidados de honra
Despedi-me. A hora do jantar se aproximava e desejava circular pelo
ambiente aveludado em busca de outros contatos. Foi então que entendi
todo o esplendor do grande jantar de Estado oferecido ao Brasil e a sua
presidente. Em seu nome, a Sala de Festas projetada por Eugène
Debressenne e inaugurada às vésperas da mítica Exposição Universal de
1889, resplandecia.
No alto, a iluminação dos grandes lustres de cristal que datam da
Restauração – entre 1815 e 1830 – ressaltava o dourado das cúpulas
aplainadas, assim como as cores do painel “A República, Salvaguarda da
Paz”, obra de Guillaume Dubufe. Vinte e três mesas exibiam nomes de
capitais brasileiras. A minha, Goiânia, ficava ao fundo, mas era pelo
menos beneficiada por uma visão geral do salão. Sobre todas as mesas,
pétalas de rosa espalhadas, como se caídas naturalmente dos três
arranjos de centro. Sobre as toalhas, taças de cristal Baccarat com as
iniciais RF, prataria e pratos Puiforcat, identificados pelo selo Palais
de Elysée, que custam entre € 3 mil e € 6 mil cada.
Circular me permitiu localizar as personalidades convidadas e suas
posições no salão. Na mesa principal, a única retangular, estavam, além
do casal anfitrião, dez convidados de honra, dos quais quatro
brasileiros: Dilma, sua filha, Paula, a presidente da Petrobrás, Graça
Foster, e o embaixador do Brasil em Paris, José Maurício Bustani.
Assediado pela imprensa em Paris, o ex-presidente Lula não ocuparia seu
lugar de honra. Mas havia outras celebridades, como o chef
Alain Ducasse e o ex-jogador Raí.
Presidentes e diretores de grandes
empresas, como as francesas Casino, Accor e Total, ou as brasileiras OAS
e Andrade Gutierrez, posicionavam-se próximos a líderes políticos.
Fanfare pour le Carrousel Royal
Cumprimentei dois ministros brasileiros: Antonio Patriota, das Relações
Exteriores, e Celso Amorim, da Defesa. A mesa do segundo revelava
bastante das intenções do Palácio do Eliseu ao oferecer a noite de gala.
Nela estavam Jean-Yves Le Drian, ministro da Defesa da França, e Serge
Dassault, industrial e presidente de honra da Dassault Aviation,
fabricante dos caças Rafale, que a França tenta vender ao Brasil.
Assediado por jornalistas, Serge Dassault se mostrou gentil e
transparente. Aos 87 anos e sem papas na língua, parecia se sentir livre
para manifestar seu pessimismo quanto às chances do Rafale frente ao
F-18 Super Hornet, fabricado pela Boeing. “Não será nesta noite que
vamos fechar”, brincou. “Tudo que sabemos é que os americanos estão
fazendo um esforço terrível. Não temos os mesmos meios”, disse,
reconhecendo uma fraqueza de sua aeronave: “Nossa desvantagem é o euro.”
A essa altura, o jantar gastronômico preparado pelo chef
Guillaume Gomez, que assumiu o posto com o novo governo, em maio, se
encaminhava para o começo. Passava um pouco das 20h30 quando Dilma
apareceu ao fundo, ladeada por Hollande. Nesse momento a Orquestra de
Cordas da Guarda Republicana do Palácio do Eliseu, que ao longo da noite
executaria obras de Villa-Lobos e Tom Jobim, de Mozart e Schubert,
optou por Fanfare pour le Carrousel Royal, partitura do século 17 assinada pelo florentino Lully.
Colados aos assentos
Juntos, os dois líderes subiram ao palco, onde Hollande tomou a
palavra. “A senhora é a primeira (mulher) presidente do Brasil, à frente
de um dos mais vastos países do mundo, da sexta maior economia do
globo, da quinta população. É um orgulho recebê-la”, disse, encerrando
sua intervenção com um “cabe a nós moldarmos o mundo de amanhã”, um
“Viva a amizade franco-brasileira” e um brinde de champanhe Philipponnat
Cuvée 1522, da safra 2003, vinda da reserva presidencial de 15 mil
garrafas protegidas por uma porta blindada, não longe do comando do
arsenal nuclear do país, situado em um bunker do prédio.
Dilma retribuiu a acolhida com um discurso menos abstrato, que pregava o
estreitamento da parceria estratégica dos dois países. “Proponho um
brinde ao futuro da parceria e da amizade entre a França e o Brasil”,
afirmou, erguendo a taça.
Em gesto de cortesia, ambos passaram pelas mesas centrais,
cumprimentando os presentes. Hollande tomou assento no meio de sua mesa,
como reza o protocolo francês, ao lado de Dilma. Próximo estava Valérie
Trierweiller, sua discreta companheira, vestida com sóbrios e elegantes
tons de cinza e preto. Então, batalhões de garçons revezaram-se
apresentando as opções aos convidados, que se serviram nas bandejas
carregadas de vieiras marinadas e tartare de salmão defumado ao molho de pimenta-rosa, de frango de Bresse gratinado com parmesão e de suflê de batatas com cenoura.
Durante cerca de uma hora, todos ficamos colados a nossos assentos, eu
cercado de um ministro e sua mulher, jornalista, um senador, uma
militante de ONG, a francesa radicada no Rio Véronique Delormel e,
acaso, um diplomata encarregado de temas geopolíticos sensíveis, como
Irã e Síria. Aos poucos, alguns convidados começaram a se levantar,
minutos após a tábua de queijos e antes da chegada da torta de mousse
de chocolate com avelãs que encerraria o jantar – evento inscrito desde
2010 como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco e
oferecido a oito líderes mundiais nos últimos seis anos, o último, o
presidente italiano Giorgio Napolitano, em 2012.
“Pergunta dura”
Hollande e Dilma voltaram a circular entre as mesas, confraternizando
com os ilustres. Nós, jornalistas, fizemos o mesmo. Eu me diverti ao
constatar que Jean-Charles Naouri, poderoso diretor-presidente do grupo
supermercadista Casino, dono do Grupo Pão de Açúcar, dividia a mesa com
Luciano Coutinho, presidente do BNDES. Tomei a seguir alguns instantes
de Celso Amorim, que demonstrava satisfação com os rumos da parceria
estratégica entre os dois países. Bustani também parecia animado. “Foi
muito bom, viu? Essas declarações todas… Tem coisa boa ali. Lê nas
entrelinhas”, recomendou, com a habitual elegância.
Já Mantega tinha a expressão fechada. Abordado, comentou sobre sua
agenda, mas desconversou quando o questionei sobre como os discursos
antiausteridade de Dilma haviam sido recebidos pelo governo francês.
Então Dilma, que continuava a circular pela sala, quebrou a barreira
com a imprensa reaproximando-se do jornalista Gianni Carta,
representante de CartaCapital, o único repórter ao qual
dedicara instantes de atenção em sua chegada. Nesse momento, Véronique, a
francesa que se sentara a meu lado, tomou a atenção da presidente,
obrigando-a a parar. Sem perceber, Hollande seguiu desacompanhado, foi
abordado por um convidado, com quem trocou poucas palavras, e se voltou,
descobrindo-se em um breve e inesperado instante de solidão.
“Bonsoir, monsieur le président”, disse-lhe eu, estendendo-lhe
a mão. Hollande correspondeu com um sorriso amigável, como se eu fosse
um velho conhecido. Apresentei-me como jornalista, e ele me interrompeu.
“Sim, sim, sim. Foi você quem fez a pergunta na entrevista, muito dura,
muito dura. Mas é a regra. Foi dura”, disse ele.
Voz alta
Hollande se referia à entrevista coletiva que antecedera o jantar,
quando eu perguntara a Dilma sobre as denúncias de Marcos Valério. Em
tom de brincadeira, pedi desculpas pela suposta rudeza. Ele respondeu
sério, afirmando que não havia razão para isso.
Evoquei então a ausência do ex-presidente Lula no evento. Hollande
respondeu: “Ele está doente... Não está bem.” Eu questionei: “Será?” O
presidente abriu mais os olhos e, usando as mãos em um gesto de
incerteza, disse: “Não sei!” E então completou, sabendo que eu
entenderia a alusão às denúncias: “É sério?” Eu lhe disse não saber se
eram verdadeiras, mas confirmei que as informações do Brasil eram
graves. Interessado, mas prudente, ele retorquiu: “Não tenho informação a
respeito.”
Dilma então se reaproximou, brincando: “Os franceses se dividem em dois
grupos: achei um que mora em São Paulo. Todos os outros moram no Rio.”
Como os dois, voltei a navegar pelo salão. Encontrei o ministro Le
Drian, a quem inquiri sobre os Rafales, e a seguir deparei com o
assessor especial da Presidência Marco Aurélio Garcia, que conversava
com Alain Touraine. Me aproximei de ambos, interrompendo-os, e disse ao
brasileiro que o sociólogo considerava Lula “indestrutível”. Marco
Aurélio comemorou em voz alta: “Ah, muito bem! Mas eu duvido que seu
jornal vá publicar essa frase.”
***
[Andrei Netto, correspondente do Estado de S.Paulo em Paris]
[Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário