O
pau continua quebrando na casa da Noca, digo, no Supremo. É bate-boca
aqui, bate-barba ali, ora com respeito meramente protocolar entre as
"excelências", ora com chumbo um pouco mais grosso.
É
interessante notar que os ministros da mais alta corte do país quase
sempre se valem do registro (supostamente) formal da língua, mas... Mas
às vezes o sangue caliente faz um ou outro integrante escorregar...
Ontem,
ao vir para o jornal, ouvi uma matéria sobre o que ocorria em Brasília.
Depois de falar sobre os bate-bocas da sessão do Supremo, a repórter
Raquel Miura, da CBN, pôs no ar trechos em que os ministros digladiavam
verbalmente. Percebi que um deles escorregou na concordância, mas não
consegui memorizar a fala dele. Assim que pus os pés no jornal, acionei
Felipe Seligman, companheiro da Folha em
Brasília. Imediatamente, Felipe, que estava no Supremo, mandou-me o
áudio do trecho em que um dos ministros disse o que está no título desta
coluna.
Não,
caro leitor, o problema não está na redução da forma verbal "estão"
para "tão", em que se suprimem os fonemas iniciais de "estão" (o nome
técnico desse processo é "aférese" ou "ablação"). O emprego dessa forma
na mais alta corte do país é até interessante, já que mostra um lado
"humano" de seus integrantes. Qual é o falante do português que não
suprime o "es" inicial de muitas das flexões do verbo "estar"?
E
onde é que está o "problema"? O nobre ministro fez o verbo "estar"
concordar com "pessoas"; deveria tê-lo feito concordar com o núcleo do
sujeito ("liberdade"): "A liberdade das pessoas (es)tá em jogo".
Sim,
já sei: trata-se de fala espontânea, em que é mais do que comum esse
tipo de desvio, que consiste em fazer o verbo concordar, por atração,
com o elemento mais próximo ("pessoas", no caso) e não com o termo com o
qual efetivamente deveria concordar ("liberdade", núcleo da expressão
"a liberdade das pessoas"). Na verdade, embora seja mais comum na fala,
esse desvio ocorre também na escrita, em casos como "O fechamento dos
aeroportos impediram", "O preço dos imóveis dispararam", "O nível dos
rios subiram", "O valor dessas ações despencaram" etc.
Vestibulares
de ponta (Unicamp, Fuvest etc.) volta e meia incluem em suas provas
registros desse tipo de desvio em questões que não se limitam a pedir ao
candidato que aponte o desvio e o corrija; pedem também que o candidato
explique o motivo do desvio (como já vimos, o motivo é a concordância
por atração).
É
bom lembrar que não se pode confundir o caso visto acima com o que
ocorre em construções como "A maior parte dos latinos votaram em Obama",
em que se opta pela concordância (correta) do verbo com o especificador
("latinos") do núcleo do sujeito ("parte", palavra que indica noção
coletiva, de agrupamento etc.).
O
caro leitor notou que empreguei a palavra "opta"? Repito: "...em que se
opta pela concordância...". Pois bem. Essa concordância ("a maior parte
dos latinos votaram") é opcional. Nesses casos, pode-se optar pela
concordância com o núcleo ("parte") ou com o especificador do núcleo
("latinos"): "A maior parte dos latinos votou/votaram em Obama". Isso
vale para todos os casos análogos ("A maioria dos latinos
votou/votaram"; "Um grupo de estudantes tentou/tentaram"; "Um enxame de
gafanhotos destruiu/destruíram" etc.).
No
caso da fala do ministro (e em casos afins), em que o núcleo do sujeito
não indica noção coletiva, nada de dupla possibilidade. Vamos às formas
adequadas ao padrão formal da língua: "O fechamento dos aeroportos
impediu"; "O preço dos imóveis disparou"; "O nível dos rios subiu"; "O
valor dessas ações despencou"; "A liberdade das pessoas está em jogo". É
isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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