Crítica
de traduções
Houve
um tempo (entre 1944 e 1946) quando quem traduzia livros para o português vivia
atemorizado. É que havia um crítico de traduções, chamado Agenor Soares de Moura, que não perdoava. O homem dominava o inglês, o
alemão, o francês, o espanhol, o italiano e, quando pegava uma tradução que não
lhe agradava, depenava a vítima. Monteiro Lobato, Oscar Mendes, Tasso da
Silveira, Adonias Filho e outros sofreram na sua mão.
Um
desses artigos começa logo assim: "Do romance de Jacob Wassermann Gaspar
Hauser existe uma tradução de Adonias Filho (Ed. Pan-Americana S/A). A versão
absolutamente não se recomenda. O tradutor não declara de que idioma a fez, mas
vamos provar que foi um texto francês, embora na folha de guarda apareça o
seguinte: Título do original em alemão Gaspar Hauser - no que deve haver um
ligeiro engano, mesmo que seja tipográfico, porque 'Gaspar' em alemão se
escreve com K ou com C".
E
dito isto, recolhe as imperfeições gramaticais do tradutor assinalando: "O
sr. Adonias Filho se mostra quase absolutamente incapaz de usar corretamente os
pronomes 'lhe' e 'o' com os verbos de que são complemento, podendo-se-lhe
aplicar isto que se lê na p. 251 do seu livro: 'Quanto sofria sinceramente ao
verificar que um homem não sabia distinguir o dativo do acusativo'. É
precisamente o que se dá com o tradutor, que baralha constantemente (48 vezes
pelo menos) o dativo representado por 'lhe' com o acusativo representado por
'o', chegando a errar duas vezes na mesma linha, e três ou quatro na mesma
página, com verbos diferentes. São coisas comuns no seu trabalho: 'O céu lhe
proteja: a sua mãe lhe pôs no mundo: o tenente lhe quer ver' - ao lado de: 'eu
pedi que terminassem o cavalinho que o carcereiro o havia dado'. Não se exige
purismo da parte de quem traduz, exige-se apenas decência".
O
homem era mesmo brabo. E o pior é que parecia ser também competente, pois
quando, diante desses artigos que demonstravam tanta perícia, o convidaram para
traduzir os quatro livros de Thomas Mann onde este fabulava a história bíblica
de José no Egito, ninguém ousou apontar qualquer falha em sua tradução. Por
isto é que Paulo Ronai, lamentando a morte de Agenor, em 1957, disse: "Se
eu tivesse de exemplificar as qualidades do tradutor ideal, reunidas num
brasileiro, apontaria sem hesitação a pessoa de Agenor Soares de Moura".
Pois o trabalho desse exigente tradutor e gramático acaba de ser revalorizado
num volume preparado por Ivo Barroso: "À margem das traduções" (Ed.
ARX), com a colaboração de Afonso Siqueira Soares, filho de Agenor.
É
interessante saber que, há quase 60 anos, havia nos suplementos, o que não há
hoje, um lugar para crítica de traduções. Um espaço que foi conquistado pela
competência de Agenor, que não freqüentava as rodas literárias cariocas, nem
era da Academia Brasileira de Letras, senão um professor que morava lá em
Barbacena. E que foi descoberto quase que por acaso, pois como lembra Ivo
Barroso: "Aí por volta de 1942, Guilherme Figueiredo, já então renomado
teatrólogo, ator da comédia 'Lady Godiva', foi convidado por Raul Lima, redator
chefe de 'O Diário de Notícias', para dirigir o suplemento daquele jornal e
nele assinar um rodapé de crítica literária. De certa feita, já meio cansado de
comentar os maus romances que apareciam no mercado, Guilherme resolveu mostrar
a fragilidade de nossos tradutores, mesmo quando se tratava de ilustres
figurões. Saíra a lume uma tradução de 'O livro de Jó', assinada por Lúcio
Cardoso, e nela Guilherme viu erros tão palmares que se saiu com esta frase de
espírito: 'Os padecimentos de Jó foram acrescidos de uma tradução do sr. Lúcio
Cardoso'".
Como
desdobramento das discussões em torno desse fato, o jornal resolveu criar uma
seção de crítica de traduções, e o escolhido foi o remoto Agenor, que havia
enviado ao jornal uma carta também apontando erros de toda espécie nas
traduções recentes.
Ele
não poupava ninguém. Até Leonel Valandro, autor de dicionário de inglês, foi
acusado de "traduzir a martelo", de confundir "pereira" com
"abacateiro" ao mencionar "as pereiras 'aligator'", quando
o texto em inglês dizia: "alligator-pear trees, ou sejam os nossos
abacateiros". De igual modo, Alex Viany sofria nas mãos do crítico.
Igualmente Tasso da Silveira. Nem Monteiro Lobato escapou. Às vezes, cortava ou
acrescentava algo ao original. Quer dizer, uma pequena colaboração. Com efeito,
há tradutores com mania de "melhorar" o original.
Em
geral, tenho a maior reverência por tradutores e revisores, quando bons. São
miniaturistas, perfeccionistas e a eles a cultura e língua muito devem. Houve
um tempo em que, fazendo parte de um conselho editorial, sugeri que a editora,
para ser mais justa e valorizar mais o trabalho dos tradutores, começasse a
lhes pagar 1% do valor de capa, a partir da segunda edição. Afinal, o trabalho
deles continua a circular. Assim como o autor segue ganhando, por que não o
tradutor? E, além do mais, isto não seria nada para o editor, porque a partir
da segunda edição ele já não tem os gastos da primeira. Isto, fora o fato que
os editores mais espertos poderiam embutir esse 1% no preço do livro e o
leitor, em última instância, é que ia pagar.
Não
obtive êxito na sugestão.
Mas
torno a fazê-la. E a isto acrescentaria algo: em homenagem ao pioneiro Agenor
Soares de Moura, creio que a cultura brasileira teria muito a ganhar se, de
novo, abrissem espaço para a crítica e análise das traduções.
Affonso Romano de Sant'anna
[Fonte: www.atpiesp.org/boletins/2003_12.pdf]
[Fonte: www.atpiesp.org/boletins/2003_12.pdf]
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