terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Traduzir a Bíblia sem exigir perfeição à Igreja

O tradutor da versão grega do Antigo Testamento, Frederico Lourenço, está a um volume de terminar a sua missão de colocar em língua portuguesa a Septuaginta. 

             A apresentação deste novo volume da Bíblia será feita por Francisco José Viegas e o tradutor na Fnac-Colombo, dia 4 pelas 18h00. 

Escrito por João Céu e Silva 

O professor catedrático e coordenador dos Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra é mais (re)conhecido pela sua atividade de tradutor do grego e do latim e é nesta missão de traduzir a Bíblia que tem ocupado a maior parte do seu tempo na última década. Não que Frederico Lourenço se tenha apenas dedicado à Bíblia, pois entretanto publicou dois livros com a edição bilíngue de alguns Evangelhos, além de outras obras clássicas.

Publicado há duas semanas, o sexto volume da Bíblia já chegou às livrarias e sucedeu-lhe o mesmo que aos anteriores volumes: a entrada direta nos primeiros lugares das tabelas de vendas. Pergunta-se ao autor se o leitor não estranha que esta tradução esteja a ser feita por alguém que “começou este trabalho há mais de uma década, numa atitude de afastamento em relação à Igreja Católica”, como o próprio escreve no prefácio. Frederico Lourenço explica a decisão que o levou a enfrentar um trabalho monumental de vários milhares de páginas: “Diria que houve uma grande vantagem no facto de ter começado todo este trabalho sobre a Bíblia no longo período da minha vida em que estive afastado da Igreja. Não parti para o trabalho com o intuito de reivindicar e provar as certezas do catolicismo, mas sim numa atitude racional e aberta à viagem que o trabalho sobre a Bíblia me iria proporcionar.” Acrescenta: “Não comecei com as conclusões definidas de antemão, como acontece no estudo teológico da Bíblia, mas com tudo em aberto. Deixei que o estudo e o aprofundamento dos temas me levassem ao ponto no qual a análise objetiva dos problemas teria inexoravelmente de chegar. A viagem consistiu no processo intelectual de entender objetivamente a Bíblia, em vez de ter andado à procura, na Bíblia, da confirmação de certezas pré-adquiridas.”

Não é difícil confirmar o entusiasmo com que avançou neste volume ao lerem-se as várias notas introdutórias aos vários textos e, principalmente, as notas de rodapé que acrescentam uma enorme compreensão à leitura de o Pentateuco. Daí que se questione o tradutor sobre o quanto “esta viagem pela Bíblia” o fez regressar “à vivência serena da prática católica” e se justifica o “reequacionar” da sua “identidade de ex-católico” por estar mais esclarecido. Vai-se mais longe; é a releitura da Bíblia a solução para os católicos desavindos com a sua Igreja poderem recuperar a sua fé? Responde: “A vivência da fé é diferente para todas as pessoas e cada indivíduo tem a sua história pessoal de proximidade e de afastamento em relação à Igreja. No meu caso, o ter-me afastado da Igreja nunca representou um afastamento de Jesus Cristo e da sua mensagem. Sou conscientemente um seguidor de Jesus desde que percebi, em criança, o que isso significa. O meu amor por Jesus nunca esmoreceu um milímetro em toda a minha idade adulta, embora não possa esconder que a Igreja Católica na qual fui batizado e educado me tenha desiludido muitas vezes. Mas a minha atitude atual é de não exigir da Igreja a perfeição, porque eu próprio não sou perfeito e não tenho nem autoridade nem santidade para atirar pedras a ninguém. De resto, o meu regresso à Igreja tem sido marcado pela surpresa diária relativamente ao acolhimento generoso das pessoas que são a Igreja: refiro-me tanto ao clero como aos católicos frequentadores assíduos da Igreja.”

Frederico Lourenço considera este VI volume o mais importante do Antigo Testamento, tendo antecipado a sua tradução e deixado por terminar o Tomo 2 do V volume. Não se pode fugir à grande questão sobre se essa alteração de plano se deve a estar cansado de uma tarefa que já leva muitos anos? Explica as razões de ter mudado a ordem assim: “Uma ideia que passou por vezes pela minha cabeça era que seria pena se morresse sem ter traduzido a parte mais importante do Antigo Testamento: o Pentateuco, que está contido neste Volume VI. Não conto morrer em breve, mas apaziguou-me deixar para último lugar o tomo menos interessante do Antigo Testamento e lançar-me diretamente à tarefa de trabalhar sobre o Pentateuco. A decisão foi determinante para mim, porque foi a viagem pelo Pentateuco que fez desmoronar as reservas que eu tinha em relação ao regresso à Igreja.”

Na introdução ao livro de Levítico, Frederico Lourenço faz uma pergunta: “Quem é o destinatário das leis que aqui são codificadas?” A resposta que dá é de que estas leis se aplicam exclusivamente a Israel. Então, quer-se saber, como vê esta “legislação” com a guerra que Israel está a fazer? O tradutor assinala que é uma “questão absolutamente crítica”. Prossegue com o seu pensamento: “Antes de conhecer a fundo o Pentateuco, achava que representava o empecilho intransponível que me impedia de me identificar como católico praticante. Como é que um cristão pode aceitar algumas das barbaridades que são atribuídas a Deus neste conjunto de cinco livros? Acabei por encontrar o meu caminho intelectual nesse labirinto - será o tema do meu próximo livro -, que me mostrou ser possível ter fé e pertencer à Igreja, sem contudo ter de engolir tudo o que os antigos israelitas quiseram pôr na boca de Deus. Dou só o exemplo de Deuteronómio 21, em que os pais de um filho alcoólico são autorizados a entregá-lo para ser apedrejado até à morte. Não aceito que esse procedimento seja possível para pais cristãos de um filho alcoólico. Digo o mesmo da autorização repetidamente concedida por Deus aos israelitas na Bíblia para exterminarem os outros povos que com eles partilhavam a mesma terra. Temos de aceitar que Deus não disse nem diz tudo o que convém aos homens que Ele diga.”

O tradutor faz questão de referir o poder transfigurador da intuição poética na leitura teológica e, entre parêntesis, exalta-a: “O que seria deste mundo sem poesia?” Serão os crentes tão tocados pela poesia como o tradutor, pergunta-se: “A questão da beleza poética da Bíblia bateu-me com muita força na minha adolescência, quando li pela primeira vez o romance Brideshead Revisited de Evelyn Waugh. Fala-se aí da adoração dos pastores e dos magos na manjedoura de Belém; e uma das personagens do romance diz que acredita no relato dos evangelistas porque é tão belo. É como se a beleza fosse ela própria uma confirmação da verdade. Leio e releio em grego os Evangelhos do Novo Testamento diariamente: é o meu principal exercício de devoção. E todos os dias me espanto com a beleza extraordinária do texto. As palavras de Jesus são de uma beleza poética transcendente. No meu entender, a interpretação teológica da Bíblia cartografa essa beleza em termos de uma estrutura arquitetónica cujo arco liga o Antigo Testamento ao Novo. É como se os livros individuais da Bíblia fossem pedras soltas de épocas diferentes, que a teologia junta para construir um edifício mais grandioso ainda do que a Basílica de São Pedro.”     

BÍBLIA

(Volume VI)

Frederico Lourenço (tradução)

Quetzal

608 páginas      

[Fonte: www.dn.pt]

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