O tradutor da versão grega do Antigo Testamento, Frederico Lourenço, está a um volume de terminar a sua missão de colocar em língua portuguesa a Septuaginta.
Escrito por João Céu e Silva
O professor catedrático e
coordenador dos Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra é mais (re)conhecido pela sua atividade de tradutor do grego e do latim
e é nesta missão de traduzir a Bíblia que tem ocupado a maior parte do seu
tempo na última década. Não que Frederico Lourenço se tenha apenas dedicado à
Bíblia, pois entretanto publicou dois livros com a edição bilíngue de alguns
Evangelhos, além de outras obras clássicas.
Publicado há duas semanas, o sexto volume da Bíblia já
chegou às livrarias e sucedeu-lhe o mesmo que aos anteriores volumes: a entrada
direta nos primeiros lugares das tabelas de vendas. Pergunta-se ao autor se o leitor não estranha que
esta tradução esteja a ser feita por alguém que “começou este trabalho há mais
de uma década, numa atitude de afastamento em relação à Igreja Católica”, como
o próprio escreve no prefácio. Frederico Lourenço explica a decisão que o levou
a enfrentar um trabalho monumental de vários milhares de páginas: “Diria
que houve uma grande vantagem no facto de ter começado todo este trabalho sobre
a Bíblia no longo período da minha vida em que estive afastado da Igreja. Não
parti para o trabalho com o intuito de reivindicar e provar as certezas do catolicismo,
mas sim numa atitude racional e aberta à viagem que o trabalho sobre a Bíblia
me iria proporcionar.” Acrescenta: “Não comecei com as
conclusões definidas de antemão, como acontece no estudo teológico da Bíblia,
mas com tudo em aberto. Deixei que o estudo e o aprofundamento dos temas me
levassem ao ponto no qual a análise objetiva dos problemas teria
inexoravelmente de chegar. A viagem consistiu no processo intelectual de
entender objetivamente a Bíblia, em vez de ter andado à procura, na Bíblia, da
confirmação de certezas pré-adquiridas.”
Não é difícil confirmar o entusiasmo com que avançou neste volume
ao lerem-se as várias notas introdutórias aos vários textos e, principalmente,
as notas de rodapé que acrescentam uma enorme compreensão à leitura de o Pentateuco.
Daí que se questione o tradutor sobre o quanto “esta viagem pela Bíblia” o fez
regressar “à vivência serena da prática católica” e se justifica o
“reequacionar” da sua “identidade de ex-católico” por estar mais esclarecido.
Vai-se mais longe; é a releitura da Bíblia a solução para os católicos
desavindos com a sua Igreja poderem recuperar a sua fé? Responde: “A
vivência da fé é diferente para todas as pessoas e cada indivíduo tem a sua
história pessoal de proximidade e de afastamento em relação à Igreja. No meu caso, o ter-me afastado da Igreja nunca
representou um afastamento de Jesus Cristo e da sua mensagem. Sou
conscientemente um seguidor de Jesus desde que percebi, em criança, o que isso
significa. O meu amor por Jesus nunca esmoreceu um milímetro em toda a minha
idade adulta, embora não possa esconder que a Igreja Católica na qual fui
batizado e educado me tenha desiludido muitas vezes. Mas
a minha atitude atual é de não exigir da Igreja a perfeição, porque eu próprio
não sou perfeito e não tenho nem autoridade nem santidade para atirar pedras a
ninguém. De resto,
o meu regresso à Igreja tem sido marcado pela surpresa diária relativamente ao
acolhimento generoso das pessoas que são a Igreja: refiro-me tanto ao clero
como aos católicos frequentadores assíduos da Igreja.”
Frederico
Lourenço considera este VI volume o mais importante do Antigo Testamento, tendo
antecipado a sua tradução e deixado por terminar o Tomo 2 do V volume. Não
se pode fugir à grande questão sobre se essa alteração de plano se deve a estar
cansado de uma tarefa que já leva muitos anos? Explica as razões de ter mudado
a ordem assim: “Uma ideia que passou por vezes
pela minha cabeça era que seria pena se morresse sem ter traduzido a parte mais
importante do Antigo Testamento: o Pentateuco, que está contido
neste Volume VI. Não conto
morrer em breve, mas apaziguou-me deixar para último lugar o tomo menos
interessante do Antigo Testamento e lançar-me diretamente à tarefa de trabalhar
sobre o Pentateuco.
A decisão foi determinante para mim, porque foi a viagem pelo Pentateuco que
fez desmoronar as reservas que eu tinha em relação ao regresso à Igreja.”
Na introdução ao livro de Levítico, Frederico
Lourenço faz uma pergunta: “Quem é o destinatário das leis que aqui são
codificadas?” A resposta que dá é de que estas leis se aplicam exclusivamente
a Israel. Então, quer-se saber, como vê esta “legislação” com a guerra que
Israel está a fazer? O tradutor assinala que é uma “questão absolutamente
crítica”. Prossegue com o seu pensamento: “Antes de conhecer a fundo o Pentateuco,
achava que representava o empecilho intransponível que me impedia de me
identificar como católico praticante. Como é que um cristão pode aceitar algumas das
barbaridades que são atribuídas a Deus neste conjunto de cinco livros? Acabei
por encontrar o meu caminho intelectual nesse labirinto - será o tema do meu
próximo livro -, que me mostrou ser possível ter fé e pertencer à Igreja, sem
contudo ter de engolir tudo o que os antigos israelitas quiseram pôr na boca de
Deus. Dou só o exemplo de Deuteronómio 21, em que
os pais de um filho alcoólico são autorizados a entregá-lo para ser apedrejado
até à morte. Não aceito que esse procedimento seja possível para pais cristãos
de um filho alcoólico. Digo o mesmo da autorização repetidamente concedida por
Deus aos israelitas na Bíblia para exterminarem os outros povos que com eles
partilhavam a mesma terra. Temos de aceitar que Deus não disse nem diz tudo o
que convém aos homens que Ele diga.”
O tradutor faz questão de referir o poder transfigurador da intuição poética na leitura teológica e, entre parêntesis, exalta-a: “O que seria deste mundo sem poesia?” Serão os crentes tão tocados pela poesia como o tradutor, pergunta-se: “A questão da beleza poética da Bíblia bateu-me com muita força na minha adolescência, quando li pela primeira vez o romance Brideshead Revisited de Evelyn Waugh. Fala-se aí da adoração dos pastores e dos magos na manjedoura de Belém; e uma das personagens do romance diz que acredita no relato dos evangelistas porque é tão belo. É como se a beleza fosse ela própria uma confirmação da verdade. Leio e releio em grego os Evangelhos do Novo Testamento diariamente: é o meu principal exercício de devoção. E todos os dias me espanto com a beleza extraordinária do texto. As palavras de Jesus são de uma beleza poética transcendente. No meu entender, a interpretação teológica da Bíblia cartografa essa beleza em termos de uma estrutura arquitetónica cujo arco liga o Antigo Testamento ao Novo. É como se os livros individuais da Bíblia fossem pedras soltas de épocas diferentes, que a teologia junta para construir um edifício mais grandioso ainda do que a Basílica de São Pedro.”
BÍBLIA
|
(Volume VI) Frederico Lourenço (tradução) Quetzal 608 páginas |
[Fonte: www.dn.pt]


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