Aristides de Sousa Mendes, antigo cônsul em Bordéus que salvou milhares de vidas durante a II Guerra Mundial, recebeu hoje honras de Panteão Nacional.
Escrito por Susete Francisco
"Portugal, curvando-se perante a sua personalidade moral, eternamente grato, hoje e para sempre o recorda e homenageia". Foi com estas palavras que o presidente da República encerrou esta manhã o discurso na cerimónia de concessão de honras de Panteão a Aristides Sousa Mendes, uma evocação do diplomata que "serviu com coragem extrema, provação pessoal e familiar e exemplar humildade" os valores essenciais de humanidade, que não mudam por "modismo de época", nem pela "lei ou ordem de uma ditadura ou de um ditador".
Sessenta e sete anos depois da sua morte, o antigo cônsul em Bordéus, que salvou milhares de judeus e outros refugiados do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial, passando vistos à revelia das autoridades portuguesas, que acabou expulso da carreira diplomática e morreu na pobreza, recebeu hoje a homenagem do Estado português. "Aqui entra Aristides [no Panteão Nacional] e aqui permanecerá até ao fim dos tempos, se os tempos tiverem fim", disse o presidente da República, expressando assim um reconhecimento para o presente, mas também para o futuro, depois de nem sempre ter sido assim no passado.
Proscrito pelo regime de Oliveira Salazar, num processo que só seria revertido a partir da década de 80, Aristides de Sousa Mendes recebeu em 1966 o título de "Justo entre as Nações", atribuído pelo Yad Vashem (Memorial do Holocausto), em nome de Israel, a não-judeus que tenham arriscado a vida para salvar judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1987, o presidente da República Mário Soares conferiu-lhe, a título póstumo, a Ordem da Liberdade e, em 1989, a Assembleia da República reintegrou-o no serviço diplomático por unanimidade e aclamação.
Aristides de Sousa Mendes "mudou a História de Portugal nesse momento trágico que foi o genocídio na II Guerra Mundial", disse Marcelo.
O chefe do Estado lembrou que no Panteão Nacional estão nomes homenageados por vários tempos históricos, pelo pós e e antes da democracia. "O que distingue os homenageados de outrora e os de hoje são duas realidades. Eram só homens, são hoje homens e mulheres. Eram só personalidades das letras e chefes de Estado, são hoje vultos dos mais variados domínios da vida nacional. Há mais vida para além da literatura e da política, e mais cidadania do que a dos homens, mostrando a diversidade da sociedade portuguesa", referiu Marcelo, apontando também o que distingue os homenageados mais recentes. "Dois traços comuns", nas palavras do presidente da República: "Mudaram a história de Portugal e projetaram Portugal. Todos eles, disso tendo ou não o exato entendimento. Na política, na música, na escrita, no desporto, na diplomacia ao serviço da vida e da liberdade".
"Um farol em tempos de novas dificuldades"
Antes, Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, evocou também o nome de Aristides de Sousa Mendes como um exemplo para o presente, num tempo de recrudescimento de fenómenos de ódio racial e recusa do outro: "Que a sua entrada no Panteão Nacional contribua para perpetuar a sua memória e o exemplo da sua conduta, a que hoje prestamos homenagem, sirva de farol em tempos de novas dificuldades e desafios para a memória coletiva, demonstrando o valor da resistência ao injusto e desumano".
Um legado ainda mais importante quando, "oito décadas passadas sobre os acontecimentos de Bordéus, é com sobressalto que, pela Europa e pelo mundo fora, se verifica que o registo histórico do sucedido pode não ter ficado suficientemente enraizado na memória coletiva das democracias que desde então foram emergindo". Sinal disso é o "aumento evidente de fenómenos de antissemitismo, de ódio racial, de homofobia, de recusa do outro, por ser estrangeiro ou diferente", alertou o presidente do Parlamento, apontando também o "recrudescimento de discursos negacionistas do Holocausto e das vidas das suas vítimas, cujo testemunho na primeira pessoa vai, por força da lei do tempo, começando a desaparecer".
Antes, Margarida de Magalhães Ramalho, coautora do Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes e responsável científica do Museu Vilar Formoso Fronteira da Paz, fez o elogio fúnebre do antigo cônsul em Bordéus, passando em revista a ação do diplomata face à perseguição do regime nazi aos judeus - e não só - e as consequências dessa desobediência às ordens de Lisboa na vida do diplomata.
A historiadora lembrou "os que estavam em fuga" durante a II Guerra Mundial e tentavam "chegar ao sul de França e passar a fronteira. É neste contexto de angústia e desespero generalizados que Aristides de Sousa Mendes, que desde o início da guerra vinha emitindo alguns vistos à revelia da circular 14, o que lhe custou várias chamadas de atenção, decide escutar a voz da sua consciência e, ao arrepio das ordens de Lisboa, começa a emitir vistos a toda a gente, ordenando aos consulados dele dependentes" que repetissem o mesmo gesto. Uma decisão graças à qual pelo menos 10 mil pessoas entraram em Portugal, sublinhou a historiadora, destacando o apoio incondicional da mulher e dos filhos do diplomata. Pelos ecrãs montados no panteão Nacional passaram também testemunhos de refugiados que foram salvos pela assinatura de Aristides Sousa Mendes.
Placa evoca memória do antigo cônsul
Após os discursos, foi descerrada a placa evocativa de homenagem a Aristides de Sousa Mendes (não há trasladação do corpo, que continuará sepultado no concelho de Carregal do Sal, terra natal do antigo diplomata) na sala dois do Panteão, que acolhe os túmulos de Aquilino Ribeiro, do general Humberto Delgado, de Sofia de Mello Breyner Andresen e Eusébio da Silva Ferreira.
No Panteão Nacional estiveram esta manhã muitos deputados e membros do governo, numa cerimónia que contou com a presença das três mais altas figuras do Estado português - presidente da República, presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro. Na plateia estiveram também familiares de Aristides de Sousa Mendes e descendentes dos refugiados que o diplomata ajudou a salvar.
A decisão da Assembleia da República de homenagear o antigo cônsul com uma evocação no Panteão Nacional partiu de uma iniciativa da deputada Joacine Katar Moreira, que foi depois aprovada por unanimidade.
[Fotos: MARIO CRUZ/LUSA, salvo quando se indica diferentemente - fonte: www.dn.pt]
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