Nunca as metrópoles brasileiras precisaram tanto de uma revolução na mobilidade urbana. Um conjunto de ativistas e pensadores está relançando um documento, um site e uma proposta de luta por este tema. Veja o que eles pensam e pretendem
Em meados de 2014, reunimos duas pessoas responsáveis por experiências significativas de gestão pública do transporte no Brasil: Lúcio Gregori, que havia sido secretário de Transportes de São Paulo na gestão de Luísa Erundina (1989 – 1992), e João Luiz da Silva Dias, que havia sido presidente da BHTRANS na gestão de Patrus Ananias (1993 – 1997), em Belo Horizonte.
A importância histórica dos dois era significativa. Em suas gestões, foram feitas algumas das primeiras licitações do transporte público em cidades brasileiras. Em Belo Horizonte, o trabalho resultou em uma das tarifas mais baixas do país à época e em uma série de melhorias na especificação das frotas. Em meados da década de 1990, com o caixa positivo, a prefeitura chegou a oferecer gratuidade (chamada Passe Passeio) em domingos e feriados. O resultado foi uma explosão de gente circulando pela cidade nesses dias. Essa história pode ser conhecida nesse relato de João Luiz da Silva Dias para o livro Escavar o Futuro.
Em São Paulo, Lúcio Gregori se havia tornado secretário de Transportes um pouco por acaso. Problemas políticos geraram um vácuo na pasta e o então secretário de Obras assumiu interinamente os Transportes. Ainda assim, ele concebeu uma proposta um tanto ousada: subsidiar completamente o sistema, tornando o transporte gratuito no momento do uso (como ocorre com saúde, educação, iluminação pública etc).
Naquele momento, eram raríssimas as experiências de Tarifa Zero mundo afora. A gestão apostou na proposta e a prefeitura fez um interessante debate público na cidade, resultando em maioria da população favorável. O financiamento da tarifa se daria por aumentos na alíquota de IPTU, de forma progressiva (onerando mais os mais ricos). Mas a proposta não avançou na Câmara de Vereadores. Ainda assim, a gestão promoveu a municipalização do transporte e uma contundente melhoria da oferta. Essa história pode ser lida no livro lançado recentemente por Lúcio e outros autores.
Descaminhos políticos nas duas cidades fizeram perder muito dos avanços proporcionados nas duas gestões. Mas, no rescaldo das manifestações de 2013, uma nova geração de ativistas pelo transporte buscava recuperar o legado de experiências anteriores. Daí surgiu a ideia de fazer um encontro entre os dois gestores, que não se conheciam pessoalmente, embora João Luiz tenha sido autor de um dos primeiros artigos com argumentação econômica favorável à Tarifa Zero, publicado no mesmo ano em que em São Paulo se disputava a proposta.
Da conversa com os dois especialistas e membros do movimento Tarifa Zero BH surgiu um grupo de trabalho que elaborou as propostas de uma Política Nacional de Mobilidade Urbana, em seguida lançadas no site Mobilidade Brasil. O país estava às vésperas da primeira eleição após as revoltas de 2013, em que a pauta do transporte público acendeu as ruas de centenas de cidades e entrou no centro do debate político. Nossa avaliação, naquele momento, era de que havia ainda muito a avançar. Conforme o texto de apresentação da proposta:
“As manifestações de junho acenderam o tema da mobilidade urbana e do subsídio da tarifa no Brasil. Mas não nos enganemos: de lá para cá, quem está ganhando a disputa são os empresários do transporte. Políticas de subsídios e desonerações fiscais sem efetiva transparência, além da falta de recursos para políticas públicas, servem apenas para aumentar a margem de lucro das empresas que prestam serviços precários, ineficientes e caros.
Por outro lado, a dificuldade dos municípios e das regiões metropolitanas em arcarem com a gestão de transportes coletivos de boa qualidade e com os subsídios que os tornem acessíveis a toda população coloca a urgência da discussão de um conjunto de ações em nível nacional, em prol da mobilidade urbana.”
Nosso diagnóstico era de que, sem subsídio ao transporte público, não haveria condições de prestar bons serviços à população e tampouco promover a universalização do acesso às cidades, às oportunidades de emprego, serviços de educação e saúde. Entretanto, a implementação de subsídios sem avanços na regulação, controle popular, efetiva gestão pública e mudanças nas formas de licitação, poderia resultar na drenagem de recursos públicos pelas empresas de ônibus sem melhorias dos serviços.
De lá para cá, muita coisa mudou no Brasil. Outras não saíram do lugar. Os sistemas de transporte coletivo urbano seguiram mal regulados, com licitações equivocadas que remuneram as empresas por passageiro transportado (confundindo receita com custo e estimulando a superlotação), sem fontes de subsídio público. É importante lembrar que nas cidades de diversos países que oferecem transporte público de boa qualidade, parte substantiva das receitas dos sistemas advém de subsídios públicos ou receitas extratarifárias.
O modelo precário brasileiro seguiu em franca deterioração até ser atingido por uma pandemia, que escancarou sua ineficiência, falta de adaptabilidade e perversidade. Baseados, com poucas exceções, unicamente nas receitas dos passageiros, os ônibus brasileiros ajustaram a oferta com a queda da demanda, resultando em manutenção ou aumento das lotações. Um serviço essencial para o deslocamento da população tornou-se engrenagem de matadouro, contribuindo para espalhar o vírus.
A queda da demanda e as mudanças de hábito pós-pandemia ameaçam levar ao colapso um sistema que já estava periclitante. Nesse contexto, atores da sociedade civil, de governos e do empresariado buscam encontrar soluções para o transporte público. O momento demanda a retomada do debate sobre políticas efetivas para regulação, gestão pública, controle popular e financiamento do transporte coletivo urbano, tomando as melhores práticas internacionais como referência.
Examinando as propostas apresentadas no Mobilidade Brasil em 2014, não deixa de ser triste notar a atualidade do documento. Apenas a primeira das propostas foi levada adiante: a aprovação da PEC 74, que inscreveu o transporte como direito social no artigo 6º da Constituição. Falta, entretanto, tornar esse direito realidade: a educação e a saúde não seriam direitos efetivos se houvesse catracas nas portas das escolas e dos postos de saúde.
Nesses sete anos que se passaram desde a elaboração da proposta, algumas coisas se moveram. Cada vez mais cidades mundo afora adotam o subsídio integral do transporte urbano, conhecido como Tarifa Zero. Hoje, o site Free Public Transport enumera mais de 150 cidades com situações de gratuidade (total ou de algumas linhas) do transporte urbano. A proposta revolucionária de Gregori e companhia vem tornando-se realidade cada vez maior.
As maiores cidades que adotaram a política o fizeram nos últimos anos, como é o caso de Tallinn, capital da Estônia, de quase 500 mil habitantes (2013), e Cascais, cidade de mais de 200 mil habitantes em Portugal (2020). No Brasil, Maricá, no estado do Rio de Janeiro, com mais de 160 mil habitantes, iniciou a transição para a gratuidade em 2013, também como resposta às Revoltas de Junho, enquanto Caucaia, no Ceará, cidade de mais de 400 mil habitantes, adotou a política em 2021. Luxemburgo tornou-se o primeiro país no mundo a universalizar a gratuidade no transporte em 2020.
Os exemplos brasileiros mostram que a política é possível, mas as melhorias efetivas só se vão disseminar e consolidar se houver uma estruturação nacional, que atue na regulação, construa fontes sólidas de subsídio e políticas industriais para o setor. Essas propostas estão apresentadas no documento do Mobilidade Brasil. Recentemente, uma nova proposta de subsídio tem sido colocada por Lúcio Gregori: a instituição de uma taxa ou contribuição pelo uso do sistema viário, uma proposta alternativa ao pedágio urbano – que teria caráter regressivo – de taxação dos automóveis pelo uso das ruas, que oneraria mais os veículos mais caros, espaçosos e poluentes, e que seria destinada a subsídio do transporte público.
Nesse dia 26 de outubro de 2021, dia nacional de lutas pelo Passe Livre, relançamos o site Mobilidade Brasil. Optamos por, neste momento, manter o texto original da formulação elaborado em 2014. A proposta segue atual, em linhas gerais, embora mereça algumas atualizações. O importante debate sobre a busca por uma mobilidade antirracista e com igualdade de gênero avançou bastante no país e deve permear propostas como esta. Acreditamos que essa atualização pode ser feita junto a outras entidades, movimentos e coletivos que atuam no tema, em um esforço de coalizão para pautar o ano eleitoral de 2022.
Que este caminho possa ser construído a muitas mãos e que a recuperação do Brasil após um momento tão grave da nossa história dê-se junto à recuperação de um serviço público essencial para a população, que impacte diretamente as condições de vida dos mais pobres e cujo fortalecimento se torne central para cidades mais justas e de baixo impacto ambiental, em contexto de crise climática.
João Luiz da Silva Dias é economista, foi presidente da BHTRANS e da CBTU.
Juliana Afonso é jornalista e militante do Movimento Tarifa Zero BH, organização articuladora da proposta do Mobilidade Brasil
Lúcio Gregori é engenheiro e ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo
Roberto Andrés é urbanista e professor da UFMG, foi membro do Tarifa Zero BH e um dos fundadores da revista Piseagrama
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