segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Vencedora do tradicional Prêmio Juca Pato, Laerte Coutinho é primeira cartunista a receber tal homenagem 

Escrito por JULIAN RODRIGUES*

Entre tanta feiura e maldade, há lindas, ainda que tímidas, florezinhas teimando em crescer no asfalto. No último 23 de setembro ficamos sabendo que Laerte Coutinho é a intelectual do ano, título concedido pela União Brasileira de Escritores.

O prêmio, segundo o site da UBE, é “réplica do personagem criado pelo jornalista Lélis Vieira e pelo chargista Benedito Barreto em 1962 – não é um prêmio literário, mas  láurea conferida à personalidade que, havendo publicado livro de repercussão nacional no ano anterior, tenha-se destacado em qualquer área do conhecimento e contribuído para o desenvolvimento  do país e  defesa dos valores democráticos.”..

“Recatada” senhora  septuagenária, Laerte vai juntar-se à galeria ilustríssima, que agrega gente como Drummond, Octavio Ianni, Jacob Gorender, Ailton Krenak,  Belluzzo, Lygia Fagundes Telles, Antônio Cândido,  Dom Paulo Evaristo Arns, Érico Veríssimo, Cora Coralina, entre tantos outras e outros. Mais do que justo, reconhecimento óbvio a uma artista que é referência cultural e política há mais de 30 anos.

De imediato, quando decidi escrever esse artigo pensei na elegância tímida de Laerte e sua genialidade artística –  lembrei na hora de Chico Buarque  (ela e ele têm em comum um certo jeito desconfiado, além de toda vida compromissada com a transformação do mundo). Juca Pato é frescor bem-vindo em um ano ruim para o Brasil e para  Laerte – que teve Covid em janeiro, chegou a ir para UTI. Foi uma alegria imensa, para milhares de possas  sua recuperação.

Meu primeiro contato com a obra dela foi no início dos 1990 – Piratas do Tietê charges na Folha de São Paulo.  “Los Três Amigos” (com Angeli e Glauco), imperdível. Só muito tempo depois fui saber que Laerte desde o fim dos anos 1970 colaborava com sindicatos e organizações de esquerda, inclusive com  o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e desenhava o icônico João Ferrador (hoje eu não tou bom). Foi militante do PCB e   ajudou a construir   várias iniciativas de comunicação popular.

Tantas charges, tantos personagens marcantes. A expressão artística de Laerte é densa e sofisticadamente imbricada à sua biografia. Engajamento político, a perda de um filho em 2005, a descoberta/construção de sua nova identidade de gênero, aos quase 60. Vida e obra.

O fato é que em algum momento Laerte transcendeu. Deixou de ser talentosa chargista. Transformou-se em filósofa, pensadora do mundo, da vida. A obra de Laerte é e vai ser cada vez mais reconhecida e estudada.

Fui apresentado à Laerte em uma manifestação contra a  homofobia,  na praça da República, talvez em 2009 ou 2010, pouco antes de ela iniciar sua  transição. Lembro-me de que fiz um comentário rápido sobre as tiras que ela estava a publicar na época. Confessei que não entendia muitas delas.  Laerte, com aquele sorriso gostoso, respondeu: “mas eu também não entendo”. A cara dela.

Em 2013, quando fui coordenador das políticas LGBT do governo Haddad e Laerte já se havia tornado uma referência também do ativismo trans, nos conhecemos de fato e fizemos, desde lá,  várias coisinhas juntas (tive o privilégio de entrevistá-la mais de uma vez, sim eu conto isso com orgulho, embora saiba que ela não gosta dessas coisas).

Laerte, prolífica, tem obra caudalosa. Um troço impressionante. Às vezes direta e acessível, muitas outras quase enigmáticas: camadas de significado a serem escavadas.

A visibilidade midiática que obteve em razão de ser pessoa pública que realizou transição de gênero “tardiamente” foi bela oportunidade para muito mais gente tomar contato com o pensamento e a arte laertianas. Programas de TV, documentários, entrevistas, instalação no Itaú Cultural, edições de coletâneas: temos celebrado Laerte – que  é generosa, criteriosa e  gente boa.  Uma espécie de personalidade “anticelebrity”.

E, poxa, além e mais importante do que tudo isso junto: nossa cartunista segue sendo uma pessoa de esquerda, que tem lado. Que nunca se furta a um bom combate. Que se posiciona não só nas suas charges. Laerte apoia candidatos de partidos de esquerda, apoia os movimentos sociais, fez a campanha “Lula Livre”. Laerte é antifascista e anticapitalista. Intelectual orgânica da classe trabalhadora.

E sem mais delongas, encerremos agora esse panegírico humilde, contudo honesto e pertinentíssimo. Viva Laerte Coutinho, intelectual do ano nesse brasilsão bolsonarista de meu deus. Salve a inteligência e a arte!

 

*Julian Rodrigues é professor e jornalista. Membro do Conselho Nacional do MNDH e da Aliança Nacional LGBTI.

 

[Ilustração: Bayram Er - fonte: www.aterraeredonda.com.br]

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