Seu livro de contos 'A Fúria' tem uma temática recorrente,
a delinquência infantil motivada pelo gosto das crianças pela perversidade
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A escritora Silvina Ocampo: denunciando a perversidade infantil
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Escrito por André Cáceres
É comum referir-se
à escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) pelas pessoas ao seu redor:
mulher de Adolfo Bioy Casares, amiga de Jorge Luis Borges e irmã de Victoria
Ocampo (editora da revista Sur, que abrigou em
suas páginas grandes nomes das letras). Com a publicação do livro A Fúria, pela Companhia das Letras, o leitor brasileiro poderá
constatar que ela não foi apenas bem-relacionada, mas uma das maiores autoras
de sua geração. Com ampla variedade temática, os 34 contos presentes em A Fúria têm em comum
uma “crueldade inocente e oblíqua”, como bem observou Borges.
Assim como ele, Silvina trata – quase sempre no registro da
literatura fantástica – de situações insólitas, surreais, impossíveis. No
entanto, ainda que ambos tenham se ocupado do mesmo gênero, ela é quase uma
anti-Borges: “Sua escrita tem uma turbidez, uma imprecisão proposital, uma
perversidade no encaixe das palavras que não são borgeanas. Há em Silvina
Ocampo uma espécie de rebeldia à racionalidade formal e à trama bem composta”,
escreveu a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, colocando-a em oposição à
precisão matemática e à nitidez quase obsessiva da literatura de Borges.
Uma temática
recorrente nos contos de A Fúria é a delinquência
infantil. Há pelo menos três contos com gradações distintas de dolo e
ambiguidade nos crimes cometidos por crianças. Em um, o narrador induz o neto a
assassinar o avô com um revólver enquanto brincavam de mocinho e bandido, sem
que soubessem que a arma estava carregada; noutro, uma criança introduz uma
aranha venenosa no coque de uma noiva, levando-a a morrer no altar; em mais
outro, o protagonista se lembra do dia em que provocou um incêndio que vitimou
a própria mãe.
Em A
Oração, uma médica aconselha a mãe de um menino nada comportado:
“Querida, feche a caixinha de remédios com chave. A criminalidade infantil é
perigosa. As crianças usam de qualquer meio para chegar aos seus fins. Chegam a
estudar dicionários. Nada lhes escapa. Sabem tudo. Ele poderia até envenenar
seu marido”. A persistência desse assunto exemplifica de modo perfeito a
estranha mescla de perversidade, dissimulação e singeleza da literatura de
Silvina.
Relacionamentos
abusivos, desajustados ou insalubres são outra tônica em seus escritos. Embora
se trate de uma autora mulher, nem sempre a tal crueldade oblíqua presente
nesses relacionamentos parte do lado masculino, como seria de se esperar. Em A
Casa de Açúcar (conto dileto de Julio Cortázar), recém-casados
estão mudando-se para uma casa. Cristina, a mulher do protagonista, adverte que
eles devem morar em um local nunca antes habitado, para que a aura dos
habitantes anteriores não influencie suas vidas. O marido engana a esposa,
comprando uma casa usada. Com o tempo, visitas estranhas começam a aparecer,
buscando a antiga ocupante da casa: seu cachorro, seus amantes, sua amiga, até
mesmo um desafeto. “Suspeito que estou herdando a vida de alguém, as alegrias e
os sofrimentos, os erros e os acertos”, constata Cristina, cada dia mais
irreconhecível e mais parecida com Violeta, que morou ali antes deles.
Em A
Continuação, a protagonista é uma escritora que vai sendo consumida
pelo ciúme que sente ao ver seu marido na companhia de uma amiga. Ela começa
aos poucos a misturar-se aos personagens de um conto que nunca conseguiu
terminar de escrever. “Ao abandonar meu conto”, diz ela, “não voltei ao mundo
que tinha deixado, e sim a outro, que era a continuação do meu enredo (um
enredo cheio de hesitações, que sigo corrigindo dentro de minha vida)”.
Já em O
Nojo, uma mulher sente uma inexplicável ojeriza pelo próprio
marido, e o remédio que imaginou para solucionar a situação não poderia ser
mais esquisito: “Tentava fazer com que suas amigas se apaixonassem por ele,
para poder, de algum modo, chegar ao carinho por meio do ciúme, mas disposta a
abandoná-lo, isso sim, ao sinal da menor traição”.
Esse misto de perversão e ingenuidade em geral é mediado pela
chave da culpa. No entanto o insólito em suas narrativas pode estar justamente
na maneira pela qual esse remorso se manifesta. No conto-título do livro, a
filipina Winifred confessa ao narrador ter queimado a amiga de infância
Lavinia. Em vez de se tornar uma pessoa melhor, porém, ela lida com o arrependimento
por uma via tortuosa: “Agora compreendo que, ao cometer crueldades ainda
maiores com as outras pessoas, ela só queria redimir-se para Lavinia.
Redimir-se através da maldade”.
Da maior parte dos contos de Silvina, emerge um perturbador
sentimento de desajuste, mas sem um motivo lógico ou explicação racional por
trás. Não em As Ondas. Embora não
seja a única, essa é a narrativa que mais se encaixa como uma ficção
científica. No futuro, em 1975, descobre-se que os humanos emitem ondas de
determinados tipos, que podem interferir e prejudicar uns aos outros — para
evitar essas interferências danosas, as pessoas são segregadas. O conto é
narrado por uma mulher que foi separada de seu amante e está prestes a fazer
uma cirurgia para tentar adequar-se à frequência das ondas dele. “Depois da
operação, penso em me alistar em uma viagem interplanetária para discretamente aproximar-me
do seu mundo”, ela informa, agarrada ao fiapo de esperança que lhe resta.
No romance A
Curva do Sonho, a escritora norte-americana Ursula K. Le Guin
imaginou um sujeito que, ao dormir, modifica a realidade ao redor por meio de
sua vida onírica e é manipulado por seu psiquiatra para sonhar com determinadas
ocasiões. Essa premissa foi antecipada em mais de uma década no conto Os
Sonhos de Leopoldina, cuja protagonista torna reais os objetos e
eventos que vislumbra à noite. Simplória, entretanto, Leopoldina sonha com
pedrinhas, plumas e objetos sem valor. As suas parentes, Leonor e Ludovica, ao
descobrirem seu dom, querem manipular seu sono. “Com o que quer que eu sonhe?”,
pergunta ela, oprimida pelas parentes. “Com pedras preciosas, com anéis, com
colares, com escravas. Com algo que sirva para alguma coisa”, pede Ludovica.
Leopoldina, porém, confessa não saber o que são essas coisas. “Tenho quase 120
anos e sempre fui muito pobre”. Essa relação familiar cai numa espiral de
exploração que faz com que parentes passem a desumanizar cruelmente uns aos
outros.
Le Guin não
foi a única herdeira literária de Silvina. Há toda uma leva de jovens escritoras
que despontam nos últimos anos com uma prosa insólita que se aproxima muito de
seus contos. As argentinas Samanta Schweblin (Pássaros na Boca e
Outros Contos) e Mariana Enriquez (Este é o Mar), e a norte-americana Carmen Maria Machado (O
Corpo Dela e Outras Farras) são algumas das autoras contemporâneas
publicadas no Brasil que usam da literatura fantástica para brincar com o
inquietante, o familiar, porém estranho — o “unheimlich” sobre o qual Freud
escreve. Silvina, por sua vez, descende diretamente do gótico de Shirley
Jackson, do horror de Mary Shelley e do surrealismo de Leonora Carrington.
Se Le Guin, Schweblin, Enriquez e Machado têm ainda um componente
feminista em sua escrita, trabalhando ativamente a questão de gênero, Silvina
não demonstra essa preocupação de forma tão clara. Ainda que seus contos
abordem com frequência o ponto de vista feminino e reflitam a situação
sufocante da mulher no início do século 20, ela, assim como outros intelectuais
argentinos da época, sempre prezou por uma “arte pela arte”, sem
politizações.
Não raro, seus contos acabam com mortes absurdas, mas quase nunca
esses desfechos são efetivamente trágicos. A comicidade inoportuna, fora de
lugar, está sempre à espreita.
[Foto: Companhia das Letras
- fonte: www.estadao.com.br]
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