sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Crítica: «Bacurau», de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Udo Kier e Sonia Braga, numa cena de Bacurau. 


Publicado por Ernesto Barros 


Começa nesta sexta-feira (16/8), pelo Festival de Gramado – como convidado hors concours, na abertura de sua 47ª edição – e se estende amanhã, sábado (17/8),  em 58 sessões de pré-estreia, espalhadas por 21 cidades brasileiras, o voo arrasador do premiado longa-metragem pernambucano Bacurau (2019), da dupla Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Até o próximo dia 29, data oficial da estreia, o filme ainda vai ganhar sessões antecipadas nos dias 23 e 24, inclusive a esperada double bill com os diretores, elenco e técnicos, no Cinema São Luiz.
O objeto voador identificado com as causas políticas e libertárias do povo nordestino, que tem deixado os espectadores salivando de desejo desde sua aclamada première mundial, no Festival de Cannes desse ano – onde dividiu o prêmio do júri com o longa francês Les Misérables, de Ladj Li –, é tudo o que você ouviu falar até agora e muito mais.
Com o mesmo ímpeto crítico de O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), os dois longas anteriores de Kléber, em que Juliano assinava a direção de arte, numa colaboração que remonta ao curta Recife Frio (2009), Bacurau avança em novas direções no desejo dos cineastas em se postarem politicamente frente ao Brasil do ontem, de hoje e do futuro.
Claro como água, o bem mais precioso da região, que até hoje é usada como moeda de troca entre poderosos e oprimidos, o filme dá um pulo de alguns anos para mostrar como as coisas pioraram para os lados de um povoado no oeste pernambucano. Bacurau, o enigmático e polissêmico nome dado ao lugar, não pode ser chamado de ordeiro, como tantos outros que carregam uma história de luta em que o sangue derramado e as cabeças cortadas fazem parte do DNA do seu povo – tanto que um placa avisa logo, sem cerimônia, que “se for, vá na paz”.
Mas, testemunhamos logo, a comunidade é das mais unidas, tanto na necessidade de proteção, quanto na sua configuração social, em que o respeito à diferença é parte inerente dos seus moradores, que se misturam sem preconceito independente de raça, cor, gênero e ocupação.
Esse sentimento de pertencimento, característico da região é ainda mais reforçado com a visão de Kleber e Juliano em mostrar Bacurau geolocalizada dos confins do universo, numa imagem que pode ser entendida como uma declaração de autodefesa: não é porque um lugar é pequeno e isolado que seus moradores podem ser caçados como animais.
Embora tenha semelhanças com O Som ao Redor e Aquarius – o senso de comunidade e reverência a seus membros, jovens e idosos, vivos ou mortos – Bacurau diferencia-se pela eleição de uma narrativa mais intensamente ligada ao cinema de gênero – ao thriller de suspense e terror e até ao western – que também já marcavam pequenas porções dos longas assinados apenas por Kleber.
Situada numa região semiárida e verde, que o formato em cinemascope do diretor de fotografia Pedro Sotero não se cansa em enaltecer, Bacurau parece um daqueles povoados poeirentos que o italiano Sergio Leone mostrava em seus filmes. Esse olhar em grande escala, aliado ao uso inteligente dos efeitos especiais, ajudam a criar a visão distópica do filme, quando uns drones começam a circular no céu de Bacurau, acompanhados de assassinatos inexplicáveis.
Na atmosfera de estranhamento construída tijolo a tijolo, num ritmo que é efervescente como o sangue dos seus moradores, Bacurau vai ganhando as colorações violenta dos filmes que se cobrem de sangue, quando eles, sob o efeito de pílulas psicotrópicas e travestidos de cangaceiros modernos, vão até às últimas consequências contra seus agressores, um bando de turistas americanos acoitados por quem os deveria proteger. Numa reportagem da TV, somos informados de que São Paulo virou um palco para execuções públicas.
Impressionante no estabelecimento de uma realidade própria e tecnicamente impecável, especialmente nas cenas que envolvem um mosquetão, Bacurau tem suas estranhezas propositais, mas nada que prejudique o envolvimento, quase catártico, da plateia.
O elenco, vasto e heterogêneo, é um capítulo à parte, com interpretações irretocáveis do alemão Udo Kier (o chefe dos caçadores), Sônia Braga e Bárbara Colen, além de um grupo de atores nordestinos de grande talento, como Thomas Aquino e Silvero Pessoa, entre outros.

[Foto: Victor Jucá - fonte: www.jc.ne10.uol.com.br]

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