domingo, 24 de março de 2019

Emigração brasileira para o Uruguai aumenta 29% em dois anos

Fernando Schweitzer trocou Florianópolis por Montevidéu decepcionado com crise econômica e onda conservadora no Brasil



Escrito por Fabiana Maranhão



Fui morar em Montevidéu em agosto de 2017. Nunca havia pisado no Uruguai, mas fazia um tempo que queria passar uma temporada fora do Brasil. Havia sido aceita em um mestrado em uma universidade no "paisito" e só tinha lido boas notícias sobre o país de Pepe Mujica, da maconha, do aborto e do casamento igualitário legalizados.


Eu não estava sozinha: entre 2016 e 2018, aumentou em 29% os pedidos de residência de brasileiros no país vizinho. Hoje são 19,3 mil conterrâneos por aqui. É uma emigração que não ganha tanta mídia quanto a leva de venezuelanos atravessando para Roraima (em agosto de 2018, o IBGE contabilizava 30 mil no Brasil). Assim como os venezuelanos, muitos brasileiros deixam o país por questões políticas e econômicas.


Brasileiros têm direito a ficar no Uruguai por 90 dias com um visto de turista. Passado esse tempo, é preciso dar entrada em um processo de visto de residência temporária ou permanente. Depois de três meses lá, escolhi a segunda opção, mesmo sem ter planos de morar o resto da vida no país e explico o motivo.


Uma lei uruguaia de 2014 tornou mais fácil o processo para quem é de países membros e associados do Mercosul. Além disso, um acordo bilateral entre Brasil e Uruguai, de julho de 2017, simplificou ainda mais a vida de quem pensa em emigrar para o país vizinho.


Para dar entrada no pedido de visto de residência permanente, só precisei apresentar passaporte, certidão de nascimento e um documento de antecedentes criminais. E não foi preciso pagar nada. De posse de um papel que comprovava que havia iniciado o processo de residência, pude tirar a cédula de identificação, uma espécie de RG, documento que me permite conseguir trabalho e ter acesso a serviços de saúde, educação, seguro social, entre outros.


Uruguai que fala português

Já em terras uruguaias, não demorou muito para encontrar conterrâneos e conterrâneas, tanto aqueles que estavam a passeio (em muitos pontos turísticos da capital só se ouve português) quanto os que tinham adotado o país vizinho como novo lar.


Mas certamente foi durante as eleições de outubro passado no Brasil que mais conversei com gente e soube de brasileiros que já estavam de malas praticamente prontas para se mudar para o Uruguai. A quantidade me surpreendeu tanto que, assim que 2019 chegou, resolvi buscar dados, e o que era suspeita se transformou em fato.


Em 2018, o governo uruguaio concedeu 1.880 vistos permanentes de residência a brasileiros. No ano anterior, esse número havia sido de 1.832 e, em 2016, de 1.458. Entre 2016 e 2018, essa quantidade aumentou 29%, segundo dados fornecidos ao TAB pelo Ministério das Relações Exteriores uruguaio. Já os vistos de residência temporária tiveram queda de 45% no mesmo período. Ou seja, os brasileiros estão indo ao Uruguai pensando em lá ficar.


A estimativa é que 19,3 mil brasileiros e brasileiras vivam no país vizinho atualmente, de acordo com dados fornecidos ao TAB pelo Ministério brasileiro das Relações Exteriores .


Fugindo da discriminação

A mudança da professora de inglês Agness Crystal, 39, de Campinas (SP) para Montevidéu, em novembro último, foi "repentina", embora ela nutrisse há algum tempo a vontade de voltar a morar fora do Brasil (ela tinha passado cerca de um ano na Alemanha e Inglaterra em 2002).


"A decisão final veio depois que tive um desentendimento no trabalho, sobre a minha aparência, que me cansou. Essa questão do trabalho foi a gota d'água. Mas eu já estava farta com o processo político brasileiro, com o que estava acontecendo no Brasil. Então, fiz minha mochila e vim. Não conhecia ninguém, não sabia nem onde ia dormir, não reservei hostel, foi um impulso de sair do Brasil em primeiro lugar", relembra.


Após a eleição de Bolsonaro, Agness Crystal trocou Campinas por Montevidéu pelo perfil progressista do Uruguai


A situação política ao qual ela se refere tem a ver com o acirramento que tomou conta do país durante a campanha de 2018. "Parte da sociedade se revelou assustadora por se identificar com um discurso conservador, o que rompeu um pouco a minha identidade com o Brasil, como se você se sentisse estrangeiro dentro do seu próprio país".


Escolhi o Uruguai um pouco por causa desse mito de país mais democrático, mais progressista, mais libertário em alguns pontos, embora ele seja conservador também


Agness Crystal, professora de inglês

Agness Crystal conta que a questão da segurança pessoal também pesou, tanto da decisão de sair no Brasil quanto na de se mudar para o Uruguai. "As pessoas LGBT em geral e, em especial, as pessoas transgênero, estão muito visadas por esse discurso de ódio no Brasil. O país já é o que mais mata trans no mundo e, com esse discurso, a coisa vai piorar muito. [...] E um dos motivos que me atraiu para o Uruguai foi a lei trans que tinha sido aprovada recentemente. Pensei que ter o respaldo do Estado poderia facilitar muito a vida".


Em outubro de 2018, o Congresso uruguaio aprovou a Lei Integral para Pessoas Trans focado na população trans do país. A legislação facilita a alteração de nome e sexo nos documentos de identificação, o acesso a tratamentos hormonais e cirúrgicos de mudança de sexo no sistema público de saúde, estabelece cotas para pessoas trans em postos de trabalho no serviço público e em bolsas de estudo, além de estabelecer indenização às pessoas que foram vítimas de violência institucional por causa da sua identidade de gênero durante a ditadura militar.


A professora conta que os primeiros meses no Uruguai têm sido "maravilhosos". "Tive o privilégio de conhecer pessoas muito solidárias, através de amigos comuns do Brasil, que se mobilizaram para me ajudar nesse início, para conseguir trabalho. Nas ruas, eu sinto que as pessoas são mais respeitosas, não ficam fazendo piadinha, mexendo com a gente, ao contrário do Brasil, que sempre tem, e muitas vezes é grosseiro". Agness Crystal trabalha atualmente na limpeza e manutenção do zoológico da cidade, além de prestar serviço como diarista.

Perseguição política

No começo de dezembro, o ator e diretor teatral Fernando Schweitzer, 39, saiu de Florianópolis e foi para Montevidéu só com a passagem de ida. A decisão foi tomada, segundo ele, após a vitória do presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Ele conta que sofreu ataques virtuais já na noite do primeiro turno, depois que gravou e publicou um vídeo no Facebook declarando seu voto no então candidato Ciro Gomes (PDT). "Um monte de gente começou a me adicionar e a me xingar no Facebook; sofri algumas ameaças, e na mesma noite o meu perfil foi bloqueado, ficando assim por 31 dias. Ativei um segundo perfil que eu tinha, e novamente um monte de gente começou a me adicionar. Foi quando decidi que eu tinha que sair do Brasil porque eu não estava com saco de me envolver em briga política", lembra.

"Minha primeira alternativa foi o Uruguai, por questão de distância e por causa das liberdades individuais. Hoje o Uruguai é um dos países com maior nível de liberdades individuais, com leis que protegem o indivíduo, o cidadão, independente do seu credo, religião, orientação sexual", argumenta.



Fernando Schweitzer trocou Florianópolis por Montevideu na recente emigração verde e amarela para o Uruguai



Esta não é a primeira vez que ele se aventura fora do país. Entre 2008 e 2013, o ator morou em Buenos Aires. "Eu já tinha saído do Brasil na época do governo Dilma que, para mim, já era um retrocesso, já sentia que era muito reacionário. Mas claro que jamais imaginaria que chegaria ao nível que o Brasil chegou agora". Em 2013, ele voltou a morar no Brasil quando surgiu uma oportunidade de trabalho.

Insatisfeita com o Brasil

Ao contrário de Agness Crystal e Fernando Schweitzer, a empresária Tamy Cohen, 33 anos, já conhecia bem o Uruguai antes de tomar a decisão de sair de São Paulo para viver em Montevidéu. Filha de uruguaios, ela lembra de ter passado muitas férias de verão no país.

Mas a escolha pelo "paisito" envolveu outros fatores, como a vontade de sair o quanto antes do Brasil e um relacionamento amoroso com um uruguaio. Ela conta que começou a planejar a mudança um ano antes.

"Eu não estava muito satisfeita com o país, tanto econômica quanto culturalmente. Comecei a priorizar minha vida pessoal, pensar em ter filhos e não tinha condições de ter filho no Brasil porque eu não podia sair de casa sem que alguém me abordasse e me pedisse algo. Eu achava muito perigoso tudo."

A empresária Tamy Cohen migrou para o Uruguai pela segurança e a qualidade de vida que não encontrava em São Paulo

A paulistana diz que inicialmente pensou em ir para Israel. "É onde minha mãe mora, onde tenho amigos, vou três vezes ao ano, onde me sinto super em casa. Mas aí eu estive em uma festa em Buenos Aires, conheci um uruguaio e acabei vindo pra cá".


Tamy Cohen se mudou em outubro passado e diz que se adaptou bem e rápido à nova vida, muito por já conhecer o país e o idioma. "Para mim foi fácil, me adaptei bem, mas lógico que sinto falta do povo brasileiro e da família. Mas o resto, eu estou bem satisfeita".


Para ela, o melhor destes meses que tem vivido na capital uruguaia é a qualidade de vida. "Aqui é outro ritmo. Lá em São Paulo, eu virava a noite trabalhando, lá tem essa cultura de workaholic. Aqui, talvez por estar longe do meu negócio fisicamente, quando dá 17h30, eu priorizo minha vida pessoal, vou fazer academia, vou correr na praia", relata a empresária que tem uma pequena fábrica de corte de tecidos a laser que ela agora administra à distância.


A empresária pondera apenas a questão da violência, que tem aumentado recentemente no país. "As pessoas dizem que realmente está perigoso, mas para quem morou em SP, aqui é fichinha, é nada. O problema daqui é que está começando a ter muito morador de rua, muita gente que tá vindo de fora, sem documentação, aí não consegue trabalho. Ocorrem mais furtos, roubos, mas não é aquela coisa de São Paulo que você sai de casa e não sabe se vai voltar".


Visto até recentemente como uma ilha de tranquilidade em meio aos altos índices de violência registrados na América Latina, o Uruguai vive atualmente uma explosão na quantidade de crimes. Em 2018, o número de assassinatos subiu 35% em relação a 2017.


Um relatório divulgado no começo do ano pela Fundapro (Fundação Propostas), ligada ao Partido Colorado, que faz oposição ao governo do presidente Tabaré Vázquez, revelou que em 2018 ocorreram 382 homicídios no país, uma média de um assassinato a cada 23 horas. Os dados são baseados em notícias divulgadas pela imprensa. O governo uruguaio ainda não tornou público o balanço oficial de assassinatos ocorridos no ano passado.


Se essa quantidade for confirmada, a taxa de homicídios do país será de 11,2 por cem mil habitantes. O Brasil tem uma taxa de 30,3 mortes, segundo a edição mais recente do Atlas da Violência 2018, divulgado em junho do ano passado e elaborado com base em dados do Ministério da Saúde.





[Fotos da autora - fonte: tab.uol.com.br]





Sem comentários:

Enviar um comentário