Caríssimos leitores, esta postagem deve ser articulada com a anterior. Assumo a responsabilidade de desconstruir a “narrativa” sobre o crioulo, evitando que se “compre gato por lebre”. Mais uma vez, sugiro que leiam as páginas 101-117 do meu livro, para maior aprofundamento deste tema. A próxima postagem encerra uma série de três, debruçando-se sobre a relação de Cabo Verde com África.
É preciso perceber que uma língua crioula é a que serve de veículo comum entre falantes de dialectos diferentes. Por exemplo, na Guiné-Bissau, a língua crioula resulta de contactos políticos e comerciais entre os portugueses e os povos do Golfo da Guiné (principalmente os mandingas e os fulas) desde a época do Grande-Império do Mali, no século XIII. Na Guiné-Bissau, esta língua começou a ser aperfeiçoada com maior intensidade a partir do século XVI, numa altura em que os mandingas dominavam o comércio na região de Kaabu (Gabú), que estava em grande expansão e desenvolvimento. Por isso a língua crioula é também utilizada na Gâmbia e no sul do Senegal, em Casamança. É interessante compreender o papel desempenhado pela língua malinké/mandinga na formação do crioulo da costa ocidental africana muito antes do surgimento dos cabo-verdianos. Por isso, importa sublinhar que, no caso do crioulo de base lexical portuguesa, a base vocabular africana provém do malinké (Bull, 1989: 55; Lopes, 1982: 38, 87; 1999: 154-156; 2005: 26; Mendes, 1992: 69; Mendes, 2010: 19).
Esta ordem de ideias abre-me um novo horizonte para o conhecimento de Cabo Verde. Apesar de ser um país povoado, na sua maioria, por escravos da Guiné-Bissau, o povo cabo-verdiano não fala praticamente nenhum dialecto dos grupos étnicos que lhe deram origem. Isso faz-me crer que a divisão ou não em grupos étnicos é muitas vezes um facto artificial e relativo. É artificial porque pode ser imposto, como foi no caso de Cabo Verde, do Brasil e dos EUA, que são exemplos paradigmáticos de “Novas Colónias” onde as divisões étnicas foram totalmente suprimidas e incorporadas pela cultura e língua dominantes, tornando-se países mais “coesos e unidos”. É relativo na medida em que pode sofrer fortes transformações ao longo do tempo, ao ponto de já não fazer sentido falar em grupos étnicos, ou seja, acaba por culminar com o seu esquecimento ou desaparecimento.
O facto de os malinkés/mandingas serem considerados “maus falantes” do crioulo poderia levar-me a questionar o seu papel na criação desta língua. No entanto, creio que o facto de alguém (neste caso, um grupo étnico) estar na origem de um fenómeno não o torna, necessariamente, especialista nesse fenómeno (neste caso, “bom falante”). Adaptado à linguagem política, posso dizer que o facto de a antiga Grécia ser o “berço da democracia ocidental”, isso não faz da actual Grécia uma democracia mais sólida do ocidente. Por esta via mantenho a minha posição de que a origem do crioulo seja malinké, apesar de, posteriormente, a sua apropriação por uma camada de crioulos constituída por afro-portugueses, com a sua história e consciência histórica ligadas à presença colonial, poder ter feito desaparecer dos vocábulos a identificação malinké[1]. Com base na mesma linha de pensamento, faço uma analogia entre o Império Romano e o “Grande-Império” do Mali, que pode ser aplicada ao domínio cultural. Tal como o latim que, através do Império Romano, deu origem a muitas línguas europeias – portuguesa, francesa, italiana, espanhola –, foi assim que a língua malinké, pelo domínio do “Grande-Império” do Mali, deu origem à língua crioula e a muitos dialectos da sub-região cujos países e grupos étnicos estavam sob domínio dos mandingas. Isto indica que mesmo na camada afro-portuguesa, a influência mandinga-kaabunké (Gabú) foi importante, e que o malinké está também na origem da componente africana da cultura desta camada da população (Djaló, 2012: 154; Lopes, 1999: 155-158, 166-184, 227-228).
O que muitas vezes não é explicado por pensadores contemporâneos diz respeito ao “pidjin”, que foi a “língua franca” que evoluiu para o crioulo que nós conhecemos hoje. O “pidjin” é considerado como um sistema incompleto utilizado na comunicação com pessoas pertencendo a uma outra comunidade linguística. Há quem defenda que não é uma língua materna de ninguém e a sua utilização responde a necessidades de comunicação precisas. Enquanto o crioulo é a língua materna de um grupo de locutores e, enquanto tal, deve responder ao conjunto das suas necessidades linguísticas. A transição do “pidjin” para o crioulo implicou fortes modificações socioculturais (Bull, 1989: 55-57; Djaló, 2012: 154; Lopes, 1999: 156-158, 166-184, 227-228).
Face a todas as considerações anteriores, importa agora refutar a tese, popularizada por alguns autores “pró-cabo-verdianos”, de que a actual Guiné-Bissau seria uma colónia de uma colónia, ou seja: que Portugal teria colonizado Cabo Verde e que, por sua vez, Cabo Verde teria colonizado a actual Guiné-Bissau. Esta tese baseia-se no argumento de que as duas colónias foram governadas, em certos períodos de tempo, pelos mesmos governadores com residência em Cabo Verde, que teriam domínio sobre a administração da actual Guiné-Bissau. De acordo com estes autores, só em 1879, com o decreto de 18 de março, a actual Guiné-Bissau teria recebido a sua autonomia administrativa, passando a cidade de Bolama a ser a segunda capital da actual Guiné-Bissau (depois de Cacheu) (Cardoso, 2002: 12-13; Kosta, 2007: 185; Lara, 2000: 100-103; Pélissier, 1989: 29, 41, vol. I).
Como referi anteriormente, todos os dados indicam que foram os escravos guineenses que deram origem à atual população de Cabo Verde e, por consequência, ao crioulo que hoje é uma das línguas oficiais do arquipélago, a par da língua portuguesa. Aliás, a nomeação [30-03-1834] de Honório Pereira Barreto [24-04-1813 a 16-04-1859] para o cargo de governador da Guiné-Portuguesa, demonstra que o território não era uma colónia de Cabo Verde. É curioso perguntar sobre quem seria o colonizador se os portugueses não tivessem ido para a actual Guiné-Bissau. Já que os portugueses chegaram no século XV, depois da etnia mandinga no século XIII e da etnia fula no século XIV, posso imaginar uma resposta simples e directa – os mandingas seriam colonizadores, visto que, os impérios do Mali e de Gabú exerceram um poder dominante na Guiné-Bissau. Os mandingas só deixaram de exercer o seu poder quando os fulas receberam o apoio de armas de fogo dos portugueses e obtiveram a vitória na famosa batalha de Kansala de 1867. A mesma questão sugere-nos que, se os portugueses não tivessem ocupado a actual Guiné-Bissau, talvez Cabo Verde não existisse ou talvez fosse um território muito diferente do actual (Duarte Silva, 1939: 1-8; Kosta, 2007: 185-188, 204; Lopes, 1982: 63, 88; 1988: 10; 1999: 166-184; Mendes, 2010: 20-21; Silva, 2010: 23, 31).
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 111-117). Lisboa: Chiado Editora.
É preciso perceber que uma língua crioula é a que serve de veículo comum entre falantes de dialectos diferentes. Por exemplo, na Guiné-Bissau, a língua crioula resulta de contactos políticos e comerciais entre os portugueses e os povos do Golfo da Guiné (principalmente os mandingas e os fulas) desde a época do Grande-Império do Mali, no século XIII. Na Guiné-Bissau, esta língua começou a ser aperfeiçoada com maior intensidade a partir do século XVI, numa altura em que os mandingas dominavam o comércio na região de Kaabu (Gabú), que estava em grande expansão e desenvolvimento. Por isso a língua crioula é também utilizada na Gâmbia e no sul do Senegal, em Casamança. É interessante compreender o papel desempenhado pela língua malinké/mandinga na formação do crioulo da costa ocidental africana muito antes do surgimento dos cabo-verdianos. Por isso, importa sublinhar que, no caso do crioulo de base lexical portuguesa, a base vocabular africana provém do malinké (Bull, 1989: 55; Lopes, 1982: 38, 87; 1999: 154-156; 2005: 26; Mendes, 1992: 69; Mendes, 2010: 19).
Esta ordem de ideias abre-me um novo horizonte para o conhecimento de Cabo Verde. Apesar de ser um país povoado, na sua maioria, por escravos da Guiné-Bissau, o povo cabo-verdiano não fala praticamente nenhum dialecto dos grupos étnicos que lhe deram origem. Isso faz-me crer que a divisão ou não em grupos étnicos é muitas vezes um facto artificial e relativo. É artificial porque pode ser imposto, como foi no caso de Cabo Verde, do Brasil e dos EUA, que são exemplos paradigmáticos de “Novas Colónias” onde as divisões étnicas foram totalmente suprimidas e incorporadas pela cultura e língua dominantes, tornando-se países mais “coesos e unidos”. É relativo na medida em que pode sofrer fortes transformações ao longo do tempo, ao ponto de já não fazer sentido falar em grupos étnicos, ou seja, acaba por culminar com o seu esquecimento ou desaparecimento.
O facto de os malinkés/mandingas serem considerados “maus falantes” do crioulo poderia levar-me a questionar o seu papel na criação desta língua. No entanto, creio que o facto de alguém (neste caso, um grupo étnico) estar na origem de um fenómeno não o torna, necessariamente, especialista nesse fenómeno (neste caso, “bom falante”). Adaptado à linguagem política, posso dizer que o facto de a antiga Grécia ser o “berço da democracia ocidental”, isso não faz da actual Grécia uma democracia mais sólida do ocidente. Por esta via mantenho a minha posição de que a origem do crioulo seja malinké, apesar de, posteriormente, a sua apropriação por uma camada de crioulos constituída por afro-portugueses, com a sua história e consciência histórica ligadas à presença colonial, poder ter feito desaparecer dos vocábulos a identificação malinké[1]. Com base na mesma linha de pensamento, faço uma analogia entre o Império Romano e o “Grande-Império” do Mali, que pode ser aplicada ao domínio cultural. Tal como o latim que, através do Império Romano, deu origem a muitas línguas europeias – portuguesa, francesa, italiana, espanhola –, foi assim que a língua malinké, pelo domínio do “Grande-Império” do Mali, deu origem à língua crioula e a muitos dialectos da sub-região cujos países e grupos étnicos estavam sob domínio dos mandingas. Isto indica que mesmo na camada afro-portuguesa, a influência mandinga-kaabunké (Gabú) foi importante, e que o malinké está também na origem da componente africana da cultura desta camada da população (Djaló, 2012: 154; Lopes, 1999: 155-158, 166-184, 227-228).
O que muitas vezes não é explicado por pensadores contemporâneos diz respeito ao “pidjin”, que foi a “língua franca” que evoluiu para o crioulo que nós conhecemos hoje. O “pidjin” é considerado como um sistema incompleto utilizado na comunicação com pessoas pertencendo a uma outra comunidade linguística. Há quem defenda que não é uma língua materna de ninguém e a sua utilização responde a necessidades de comunicação precisas. Enquanto o crioulo é a língua materna de um grupo de locutores e, enquanto tal, deve responder ao conjunto das suas necessidades linguísticas. A transição do “pidjin” para o crioulo implicou fortes modificações socioculturais (Bull, 1989: 55-57; Djaló, 2012: 154; Lopes, 1999: 156-158, 166-184, 227-228).
Face a todas as considerações anteriores, importa agora refutar a tese, popularizada por alguns autores “pró-cabo-verdianos”, de que a actual Guiné-Bissau seria uma colónia de uma colónia, ou seja: que Portugal teria colonizado Cabo Verde e que, por sua vez, Cabo Verde teria colonizado a actual Guiné-Bissau. Esta tese baseia-se no argumento de que as duas colónias foram governadas, em certos períodos de tempo, pelos mesmos governadores com residência em Cabo Verde, que teriam domínio sobre a administração da actual Guiné-Bissau. De acordo com estes autores, só em 1879, com o decreto de 18 de março, a actual Guiné-Bissau teria recebido a sua autonomia administrativa, passando a cidade de Bolama a ser a segunda capital da actual Guiné-Bissau (depois de Cacheu) (Cardoso, 2002: 12-13; Kosta, 2007: 185; Lara, 2000: 100-103; Pélissier, 1989: 29, 41, vol. I).
Como referi anteriormente, todos os dados indicam que foram os escravos guineenses que deram origem à atual população de Cabo Verde e, por consequência, ao crioulo que hoje é uma das línguas oficiais do arquipélago, a par da língua portuguesa. Aliás, a nomeação [30-03-1834] de Honório Pereira Barreto [24-04-1813 a 16-04-1859] para o cargo de governador da Guiné-Portuguesa, demonstra que o território não era uma colónia de Cabo Verde. É curioso perguntar sobre quem seria o colonizador se os portugueses não tivessem ido para a actual Guiné-Bissau. Já que os portugueses chegaram no século XV, depois da etnia mandinga no século XIII e da etnia fula no século XIV, posso imaginar uma resposta simples e directa – os mandingas seriam colonizadores, visto que, os impérios do Mali e de Gabú exerceram um poder dominante na Guiné-Bissau. Os mandingas só deixaram de exercer o seu poder quando os fulas receberam o apoio de armas de fogo dos portugueses e obtiveram a vitória na famosa batalha de Kansala de 1867. A mesma questão sugere-nos que, se os portugueses não tivessem ocupado a actual Guiné-Bissau, talvez Cabo Verde não existisse ou talvez fosse um território muito diferente do actual (Duarte Silva, 1939: 1-8; Kosta, 2007: 185-188, 204; Lopes, 1982: 63, 88; 1988: 10; 1999: 166-184; Mendes, 2010: 20-21; Silva, 2010: 23, 31).
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 111-117). Lisboa: Chiado Editora.
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