quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Verdades inteiramente falsas


Calúnia política é notícia velha, mas as 'fake news' são outra coisa 

Escrito por Sérgio Rodrigues 

Há uns meses, discuti com um amigo sobre um tema que paira no ar dessa festa estranha com gente esquisita que o Brasil e o mundo viraram: a epidemia de "fake news" --ou seja, notícia falsa. Os puristas reclamam da estrangeirice da expressão. Como sempre, erram o alvo. 

Tanto meu amigo como eu tínhamos nossas doses de razão. Ele estava certo de lembrar que a calúnia política não é nova e que desde a antiguidade somos uma espécie afeita à malícia. De "news", o "fake" não tem nada. 

"Maria Antonieta tripudia: 'Se não têm pão, comam brioches.'" A frase não daria um bom tuíte do tipo que batalhões de bots (já cabe o neologismo "botalhões"?) compartilham hoje em dia com velocidade pós-humana? Pois é mentira, uma irmã mais velha --menos pirada, igualmente canalha-- da mamadeira erótica. 

Maria Antonieta não disse aquilo. O kit gay é uma lenda. A Folha não pertence a Lula. D. João 6º não era um imbecil. A vizinha bonita não voava de vassoura em noites de luar. Marielle Franco não namorava um traficante. 

Meu amigo acertou ao apontar a longa história da exploração de ignorância e instinto de manada, quase sempre num contexto de medo. Mas deixou de lado um aspecto crucial das "fake news": a novidade não é a mensagem, mas o meio. 

Nunca fomos tão equipados para afogar o mundo em mentiras. A distância entre a velha notícia falsa e a de hoje é a que existe entre uma bucólica rodinha na praça e as viciantes mídias sociais. 

Não se trata de uma diferença apenas quantitativa de velocidade e alcance. Esta é vertiginosa, mas sugere uma diferença maior, qualitativa, como a que há entre um objeto físico e sua representação digital. É por isso que o nome em inglês cai bem: fato novo, palavras novas. 

Podemos deixar de lado por enquanto as considerações a respeito do impacto exercido sobre nossos padrões de convivência por essa goleada do simulacro, esse descolamento drástico entre os planos do símbolo e da realidade que o mundo virtual promove. 

Fiquemos com um problema mais imediato: como impedir que falências cognitivas de massa sejam induzidas por redes virtuais de montagem relativamente barata para debilitar e, no limite, matar a democracia representativa. Se não estivermos à altura do desafio, o que haverá para representar? 

O caso da questão do Enem sobre a gíria gay chamada pajubá é enrolado. A baixa qualidade técnica de uma questão desprovida de resposta certa dá munição a reações oportunistas --ideológicas e nada técnicas-- como a de Bolsonaro. 

Como observou Marcos Bagno, um dos maiores linguistas do país, em sua página no Facebook, o Enem erra ao chamar o pajubá de dialeto, palavra reservada ao modo de falar de comunidades geograficamente demarcadas. Trata-se de um "socioleto" ou, para simplificar, uma gíria. 

Além disso, a resposta supostamente certa sustenta que ele "ganha status de dialeto" por "ser consolidado por objetos formais de estudo" --no caso, um "dicionário" que é mero glossário amadorístico. Mesmo que o dicionário fosse rigoroso, supor que fatos linguísticos dependam da lexicografia para se constituir é absurdo. 

Some-se a isso a fala obscurantista do presidente eleito ("Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum"), com a cereja da confusão entre "dialética" e "dialeto", e o resultado é uma triste comédia de erros.


[Fonte: www.folha.com.br]


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