Apesar dos ruídos, acirramento da luta política no seio da língua é boa notícia
Escrito por Sérgio Rodrigues
Entre palavras impronunciáveis como “leitorxs” e
interdições variadas a expressões acusadas de graves crimes, estará
desculpado quem se sentir em sua própria língua como num campo minado,
com medo de dar um passo em qualquer direção e voar simbolicamente pelos
ares.
Em primeiro lugar quero deixar claro que, para mim, a transformação
do reino das palavras num dos principais campos de luta política da
atualidade é uma boa notícia. Melhor essa consciência anabolizada, mesmo
paranoica, do que a inconsciência dos sonâmbulos.
Diante dos que ainda entendem o idioma como um fato da natureza,
talvez caído do céu e sem dúvida tão inquestionável quanto a dureza da
pedra, nossa época desfralda uma construção histórica que, sendo espelho
da sociedade, de inocente não tem nada. Faz mais sentido.
Dito isso, reconheça-se que também é pertinente o susto com os
exageros da militância que muita gente sente, ainda que o receio de
reações violentas crie uma maioria silenciosa. Onde isso vai parar? Será
que existe fundamento para tanta encrenca?
Depende do que se chama de fundamento. Como o nome do jogo é
política, está liberado, por princípio, o uso de toda estratégia de
convencimento capaz de fazer avançar causas. A língua é patrimônio
público. Restringir o que se fala sobre ela seria tão censório quanto
restringir o que se fala sobre qualquer tema.
É verdade que a consistência linguística dos argumentos
“problematizadores” varia do sólido ao espumoso, mas isso acaba
importando pouco. Um exemplo de inconsistência é a afirmação de que a
regra do plural da língua portuguesa incorre em machismo ao transformar
um conjunto de leitores e leitoras em “leitores”.
Do ponto de vista linguístico, o argumento é no mínimo duvidoso.
Estudos como o do americano John Martin, citado por Sírio Possenti em
seu livro “A Cor da Língua” (Mercado de Letras), indicam que esse
suposto masculino carrega na verdade uma ausência de marcação de gênero,
uma espécie de ponto morto, o que explicaria também uma frase como “faz
frio” (e nunca “faz fria”), na qual não há sujeito com o qual fazer
concordância.
Puxa, então devemos concluir que nossa sociedade não é machista? É
evidente que não devemos concluir nada disso e que nossa sociedade é,
sim, machista até a medula. O parágrafo anterior trata de linguística,
descrição e interpretação de fatos. Acontece que o nome do jogo, como já
dissemos, é política.
A campanha do gênero dito neutro ou inclusivo, que nos últimos anos
foi além do argumento feminista para abarcar também a defesa de todo o
degradê da transexualidade, dá de barato o sexismo daquele “leitores” e
lança “leitorxs” (entre outras variações pouco práticas) para
substituí-lo.
Se o crime da palavra não pode ser provado em juízo, a
verossimilhança da acusação basta. Uma vez que o crime da sociedade como
um todo —machismo, no caso— é inegável, torna-se funcional encená-lo de
forma tão nítida. São conhecidas as virtudes do maniqueísmo, em cujo
altar a política imola desde sempre a complexidade do mundo.
O fato de reverberar na alma de tanta gente, para o bem e para o mal,
entre adesões apaixonadas e repúdios raivosos, comprova o acerto
(político, bem entendido) da estratégia.
O limite definitivo desse jogo na língua é a própria língua. Obra
coletiva ingovernável, a liberdade que ela concede a qualquer grupo para
fazer pichações em seus muros é a mesma que, no fim das contas, vai
reivindicar para si como juíza do pouco a deixar marcas duradouras e do
muito a sumir na poeira da história.
[Fonte: www.folha.com.br]
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