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Escrito por Sérgio Rodrigues
Gosto muito de dicionários e tenho
uma prateleira cheia deles. Alguns são tão antigos que trazem palavras como
"espheromachia" (definida como "jogo da bola") em páginas
que se quebram entre os dedos como finíssimas pizzas brancas.
Talvez
seja essa convivência com sua precariedade comovente, com o fato de serem os
dicionários tão condenados à decrepitude e à morte quanto qualquer um de nós,
que me leva a manter com eles uma relação que não dispensa, ao lado da
admiração amorosa, o olhar crítico. Não é algo que combine com o senso comum.
Obras
monumentais, os dicionários costumam inspirar um sentimento de reverência que
frequentemente descamba para o fervor religioso. Muita gente supõe que todas as
dúvidas sobre a língua possam ser esmagadas como moscas sob o peso de suas
páginas.
Por
trás disso está a crença de que, em vez de simplesmente registrar as palavras
usadas na vida real, os dicionários são seus inventores. Quando lá não
encontram algum vocábulo, dizem os fiéis da religião lexicográfica que ele
"não existe" –mesmo que sua existência seja uma obviedade a lhes
entrar por olhos e ouvidos todos os dias.
Mais
realista é encarar o dicionário como uma espécie de cartório de registro civil em
que as palavras ganham documentos. A falta de uma certidão de nascimento (para
brasileiros) ou de um visto de residência (para estrangeiros) cria embaraços,
mas não condena ninguém à "inexistência". O mesmo ocorre com as
palavras.
Se
a língua que usamos para dar conta do mundo é ágil, vertiginosa, dicionários
são pesados e conservadores por definição. Isso é bom. Caso corressem para
registrar todos os neologismos e gírias da moda, teriam que promover expurgos
periódicos para se livrar de bobagens precocemente esquecidas.
No
entanto, a lentidão muitas vezes faz deles árbitros falíveis diante de bolas
divididas "no intenso agora", para citar o belo título do novo
documentário de João Moreira Salles.
Longe
de esmagar todas as moscas, é comum que os dicionários engulam várias delas. Um
exemplo: faz mais de meio século que "poeta" está consagrado entre
falantes cultos como substantivo de dois gêneros, tanto no Brasil quanto em
Portugal. É difícil encontrar uma poeta digna desse nome que se identifique com
o tradicional feminino "poetisa", hoje cheio de conotações
beletristas e condescendentes.
Para
a maioria dos lexicógrafos, ainda é cedo: "poeta" é vocábulo
masculino e pronto. Até o "Houaiss", o melhor dicionário da língua
portuguesa, nega-lhe o documento unissex que ele merece faz tempo.
(Reconheça-se que, em sua edição mais recente, registra esse uso numa tímida
notinha sob a rubrica "gramática", o que é alguma coisa, mas é
pouco.)
Gostaria
que esta coluna fosse lida como uma declaração de amor aos dicionários. Quando
deixamos de vê-los como as Tábuas da Lei, fica bem mais fácil gostar deles.
O
ex-procurador Marcelo Miller declarou à Polícia Federal que fez apenas reparos
"linguísticos e gramaticais" a um esboço de delação da JBS. Achei
frágil a defesa. A julgar pelo português de Joesley Batista, deve ter reescrito
o documento inteiro.
[Foto: Fabio Braga –
fonte: www.folha.com.br]
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