sábado, 21 de outubro de 2017

A arte do choque: O 'pornográfico' Egon Schiele

Jamais alguém havia retratado a sexualidade de forma tão vívida; ele chocou a sociedade e morreu cedo

Escrito por Celso Miranda
Quando o herdeiro do trono austro-húngaro Francisco Ferdinando (aquele cujo assassinato seria o estopim para a Primeira Guerra Mundial) visitou pela primeira vez uma exposição do pintor Egon Schiele, recomendou a seu pai, o imperador Francisco José, que proibisse que tal evento fosse divulgado na imprensa, pois julgava que ninguém deveria entrar em contato com "tamanha obscenidade".

Não era para menos. Nem na Viena no fim do século 19 – capital do império austro-húngaro e até então o centro cultural da Europa – quadros tão provocativos haviam sido mostrados. Em algumas das telas que escandalizaram o príncipe Habsburgo viam-se mulheres nuas e sensualmente posicionadas de forma a fazer inveja às mais indistintas borracharias de beira de estrada, cenas de masturbação, um bispo e uma freira flagrados em momento de adoração mútua e, cúmulo do exibicionismo, o corpo nu do próprio artista, em que ele aparece com o pênis rubro e ereto. Schiele viveu pouco, morreu aos 28 anos.

Domínio publico
O autorretrato do artista
Mas enquanto pôde provocou escândalo e confusão com seus quadros depravados e seu jeito meio irreverente de ser. Viveu na pobreza, passou fome, foi preso, acusado de seduzir uma menina de 13 anos. Qualidades que fizeram dele, um ídolo entre os artistas da geração punk de Nova York, como a cantora Patti Smith.

Arte na veia

Egon Schiele nasceu em junho de 1890, em Tulin, na Áustria, uma pequena cidade às margens do rio Danúbio. A vida por ali não era diferente da de outras cidades nos arredores de Viena. O jovem Egon tinha pouco interesse pelos estudos e nenhum pelos negócios do pai, Adolph, chefe da estação ferroviária local. Aos 15 anos, ficou órfão e passou a viver com o tio, o primeiro a reconhecer seu talento para o desenho.

Outra característica que o aproxima da cultura dos punks, era sua insatisfação com qualquer tipo de arte "oficial". Assim, apesar de entrar na Academia de Belas Artes, em 1906, ele nunca se enquadrou entre a classe artística de Viena. Não levava muito a sério as aulas ou os professores e, em 1909, abandonou definitivamente o curso. Mas sua passagem pela Academia lhe rendeu pelo menos uma coisa: um amigo. Gustav Klimt na época já era famoso entre a vanguarda artística vienense e reconheceu desde logo o talento de Schiele. 

Domínio publico
Do seu lado, Schiele admirava o amigo, mas achava que eram diferentes demais para tomá-lo como exemplo. "Ironicamente, a admiração de Klimt, que se tornou seu grande mestre na escola, contribuiu para que Schiele decidisse buscar um caminho diferente, longe da Academia", diz Erwin Mitsch, autor do livro The art of Egon Schiele ("A Arte de Egon Schiele").


Seja com uma banda de rock, seja pintando quadros, nunca foi fácil iniciar uma carreira de artista independente. Muito menos em Viena em 1900. A cidade vivia uma crise política, social e econômica, quando Schiele chegou por lá. Com o pouco dinheiro que tinha no bolso – uns trocados que o tio lhe enviava de vez em quando – ele conseguiu alugar um ateliê. E só. 
Vida miserável
Schiele vivia de forma miserável, sua casa não tinha móveis nem aquecimento. Quase não comia. Mas ele não ligava. Em suas cartas da época, endereçadas à família e aos amigos, ele falava de seus problemas com dinheiro. "Me acostumei a fazer apenas uma refeição. Às vezes, nenhuma. Mas procuro sempre comer algo fresco, assim que posso", escreveu para a irmã Marie, em 1907.

Viena podia não ser mais o melhor lugar do mundo para um artista ganhar dinheiro, mas, por outro lado, os ares de radical decadência inspiravam novas ideias, novos jeitos de entender o mundo. "Depois de ter visto dias melhores e ocupado o posto de centro cultural da Europa por tanto tempo, quando abrigou as notas de Mozart e Beethoven, na virada do século 18 para o 19, a cidade vivia a decadência de um Império em seus últimos dias", afirma o historiador americano Carl Schorske, autor de Viena fin-de-siècle ("Viena Fin-de-Siècle", assim mesmo, em francês).

Domínio publico
Na velha Viena vivia-se sob o peso do pensamento pessimista, comum a toda uma geração influenciada pela filosofia trágica e irracionalista de Kierkegaard, de Schopenhauer, ou mesmo de Nietzsche. Artistas e intelectuais expressavam o sentimento geral de angústia existencial perante a precariedade da condição humana e de sua irremediável finitude. 

Gente como o escritor Franz Kafka. Ouviam-se os tristes acordes de Gustav Mahler e, é claro, começava-se a conhecer os experimentos no campo da mente e da sexualidade do doutor Freud, que lançou sua A Interpretação dos Sonhos, em 1899 (apesar de ele ter mudado a data da capa para 1900, para associar a obra com o século que começava).
Desenhos obscenos
Mas pensar (e escrever) é uma coisa. Mostrar é outra. E Egon Schiele adorava mostrar. Klimt pintava mulheres nuas, mas Schiele as mostrava em posições tão ousadas que não era qualquer modelo que se dispunha a trabalhar com ele. "Ele não recuava diante de nenhum tabu e, diferentemente de Klimt ou Picasso, outro artista que fazia sucesso pintando a nudez feminina, Schiele retratava o nu erótico também de homens, mulheres com outras mulheres e até a si mesmo, masturbando-se", diz Reinhard Steiner, autor do livro Egon Schiele (1890-1918): a Alma Noturna do Artista.


As teorias de Freud sobre a sexualidade e os quadros de nudez apimentada de Schiele não têm em comum apenas o tempo e o local em que foram produzidos. "Para Schiele a sexualidade não é algo natural. Ela é neurótica, reprimida. E sua obra pode ser considerada freudiana, na medida em que fala sobre as perversões, as neuroses de cada um", diz Cláudia Valladão de Mattos, especialista em história da arte da Universidade Estadual de Campinas. "Isso era revolucionário, se pensarmos que os conceitos freudianos estavam apenas começando a ser divulgados". Para ela, foi esse aspecto da obra de Schiele – a ideia de que a fonte de toda neurose humana é a sexualidade – que chocou a sociedade e motivou a repressão ao seu trabalho.

Domínio publico
De fato, a arte de forte apelo sexual de Schiele não passaria desapercebida no começo do século 20. Em 1909, ele já conseguia algum dinheiro e reconhecimento, o que só ajudou a chamar a atenção dos guardiães da moral – a Imprensa, dominada por grandes negociantes, e as autoridades imperiais e religiosas –, que achavam o erotismo deliberado uma depravação. Isso valeu ao artista os epítetos de Egon "perverso" Schiele e Schiele, "o pintor das imagens indecentes".


Mas apelidos não machucam ninguém, não é mesmo? Bem, talvez quando a gente é criança e está na escola. Mas Schiele já estava grandinho. Em 1910 expôs ao lado de bambambãs do expressionismo como Van Gogh e Matisse. Mesmo assim, quando as acusações de depravação tornaram-se mais frequentes e agressivas, ele resolveu que era hora de se mandar.

[Fonte: aventurasnahistoria.uol.com.br]


Sem comentários:

Enviar um comentário