Escrito por MARCO NEVES
Não é fácil responder a esta pergunta. Não há factos a que me possa agarrar para fundamentar uma qualquer escolha. Posso, apenas, dar-vos a minha opinião: o pior erro de português não é ortográfico, nem sintáctico, mas estilístico.
O pior erro de português é o abuso da hipérbole, uma simpática figura de estilo, que, em mãos competentes, é muitíssimo útil.
Já em mãos menos seguras, a hipérbole facilmente se transforma numa «hipérbole destravada», um vício pior do que a heroína (aqui têm um exemplo) — de tal maneira que muitos abusadores já nem conseguem distinguir onde acaba a realidade e começa a retórica.
Vou tentar ser um pouco mais concreto, com três exemplos (podiam ser outros):
- Política. Muitas pessoas usam e abusam da hipérbole destravada ao descrever os defeitos dos adversários. A certa altura, já estão tão enterrados na bola de neve argumentativa, que se esquecem de qualquer princípio democrático ou sentido da decência ao escrever. Ainda ontem li quem sentisse «nojo» por ter havido eleições com um resultado de que não gosta. Há quem diga que este é o pior país do mundo. Querem um exemplo real? Li isto ontem, sobre os resultados das eleições de domingo: «Este país fede! Fede a gente triste e miserável, pequena, vil e desprezível.» Isto para não falar dos insultos a candidatos e apoiantes, a mais óbvia das hipérboles destravadas. (Digo isto após estas eleições, mas o mesmo acontece, em todos os partidos, depois de qualquer eleição.)
- Língua. Nestas questões da língua, adoramos exagerar e carregar nos tons até ficarmos com a pintura toda borrada: é a língua que morre, são os jornalistas (ou a profissão que nos apetece atacar nesse dia) que já não sabem português, são os jovens que ninguém percebe, é o vocabulário que está reduzido a três ou quatro palavras, é isto e muito mais. Tudo hipérboles, mas que de tão repetidas são já consideradas verdades indesmentíveis. O pensamento baralha-se com tanta hipérbole a embater violentamente no nosso cérebro…
- Vida pessoal. Quando falamos entre amigos desta ou daquela pessoa, é habitual deixarmos cair a argumentação num qualquer extremo: o João ou é uma besta ou é bestial. O Pedro ou não sabe o que está a fazer com a vida, ou é um génio (a chamada hipérbole-oito-ou-oitenta). A vida é comentada e vivida em registo de hipérbole destravada, toldando-nos a capacidade de pensar. É difícil escapar a isto — e talvez por ser tão normal na vida pessoal, usamos o mesmo tipo de argumentação emocional e sem freio quando discutimos assuntos mais gerais.
A hipérbole destravada é uma espécie de mecanismo de defesa das ideias que temos: em vez de pensar um pouco e fundamentar as nossas opiniões, criamos um fogo de artifício retórico, que, ainda por cima, puxa a questão para o lado do tribalismo: ou nós, ou eles (que pensam sempre mal).
Repare o caríssimo leitor: este erro de português impede o diálogo e limita-nos o pensamento. Isto é bem mais grave do que qualquer erro ortográfico.
[Fonte: www.certaspalavras.net]
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