sexta-feira, 9 de junho de 2017

E quando a tradução não está lá essas coisas?

De lá pra cá: em artigos publicados periodicamente n'A Escotilha, vamos falar um pouco do que é traduzir, como é a formação de um tradutor e outros assuntos relacionados à tradução.

Montagem: foto "Funny traffic sign in Copenhagen", by Rony Welter com Idilli, de Giacomo Leopardi


Por Petê Rissatti 

Uma das atividades mais antigas do mundo, tirando aquela que é mais antiga ainda, é a tradução. Se pensarmos na história da Torre de Babel: Deus, fulo da vida por que a torrinha estava subindo, estalou os dedos e fez cada um falar uma língua diferente para que ninguém mais se entendesse.

Como negociar sempre foi do homem, certamente os primeiros a sair da torre já estavam aprendendo como se comunicar com os que vinham a seguir. Talvez para vender água, cerveja e amendoim aos que desceram por último. E tradução também é negociação.

Traduttore, traditore: não use, por favor

David Bellos, autor do livro Is That a Fish in Your Ear? – Translation and The Meaning of Everything, ainda sem tradução para o português (clique aqui para a versão em inglês), destaca que a velha, gasta, antiquada e, ao meu ver, ridícula máxima da tradução, traduttore/traditore (tradutores/traidores), remonta lá ao século XIII, no Império Otomano, quando os dragomanos (intérpretes e tradutores comerciais) faziam o meio de campo entre comerciantes italianos e nobres otomanos e atenuavam as negociações, que em geral continham muitos impropérios de todos os lados.
Como comenta Bellos no capítulo dedicado à tradução oral: “Para que dobrar o risco deixando de abordar os poderosos locais com o servilismo floreado ao qual estavam acostumados? Acrescentar alguns parágrafos de devoção eterna não era má tradução. Era um seguro de vida”.
Ou seja, os tradutores de obras escritas – que estavam lá, quietinhos, junto aos escribas, fazendo suas traduções na tranquilidade – acabaram levando a fama sem sequer chegar perto da cama. E com essa anedota marota chegamos à questão da visibilidade do tradutor, da qual falaremos algumas vezes por aqui.

Ah, essa autora é demais

Situação 1: você pega aquele livro que todo mundo comenta que é maravilhoso. Mergulha na leitura. Se delicia, se refestela, ama, lê um pouco mais devagar para o livro não acabar. Quando chega à última página, dá aquele suspiro e diz: “Nossa, essa autora é demais. Que maravilhosa. Que estilo! As metáforas tão bem elaboradas, a fluidez do texto. Vou ler mais coisas dessa italiana, viu?”.
Situação 2: você pega aquele livro que alguém comentou que é bacana. Entra na leitura, mas sente algum estranhamento. O texto não flui, é travado, meio desconjuntado. Você lê rápido para pegar o próximo livro maravilhoso da italiana, e não abandona o livro ruim porque, oras, você não é do tipo que abandona livros. Quando chega à última página, dá aquela bufada e diz: “Nossa, que tradutor ruim. Nunca mais leio nada dessa editora. Como dão um texto desse pra um zé-mané traduzir? Credo, vou ler a italiana que ganho mais”.
Percebem a diferença? Quando o livro é maravilhoso, fluido, perfeito, sem sobressaltos, a autora ou o autor leva todos os louros e o tradutor é automaticamente esquecido. Inevitável, claro, pois o livro é dela, a ideia é dele, a fama, o nome, tudo é de quem escreveu o livro.

Mas e quando a tradução não está lá essas coisas?

Quando o livro falha, quando há um problema de texto, a culpa, claro, é do tradutor. E somente dele. O texto maravilhoso do autor é do autor. O texto capenga do autor é do tradutor.
Em geral, quem lê apenas o texto em português só se lembra do tradutor quando o texto é ruim. E também é óbvio, pois aquele texto foi recriado em português, existe em português porque uma tradutora/um tradutor trabalhou nele.
E por isso precisamos lembrar: tudo é do autor, menos o texto em português. E ao mesmo tempo é. Esse é um dos paradoxos da tradução, do qual falaremos no próximo post.
Que tal se elogiássemos a tradução também quando um livro impressionar? Não estamos querendo confete não, é apenas nosso trabalho.
Mas um pouco de reconhecimento não faz mal a ninguém.
***
Este foi o primeiro de uma série de textos que publicaremos aqui n’A Escotilha sobre questões de tradução, visibilidade, mercado e formação de tradutores. Espero que gostem e que seja útil para trazer um pouco mais desse mundo em que a tônica maior é a diversidade.

[Fonte: www.aescotilha.com.br]

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