Wilton Marques, da UFScar, encontrou menções a 'Livro dos Vinte
Anos' enquanto pesquisava a relação de literatos com periódicos; não se sabe,
porém, por que Machado desistiu da obra
Escrito por Maria Fernanda Rodrigues
Crisálidas (1864) foi o primeiro livro de poemas de Machado
de Assis (1839-1908) – mas quase não foi. Duas notas publicadas no Correio
Mercantil em 1858 e em 1860 e um anúncio veiculado no Correio da Tarde também em 1860 mostram que ele se
preparava para lançar o Livro dos Vinte Anos. Essa
informação, descoberta agora pelo professor Wilton Marques, da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar) e divulgada com exclusividade para o Estado, nunca foi
incluída em suas biografias, e especialistas contemporâneos dizem nunca ter
ouvido falar no tal livro de poemas.
![]() |
Para especialistas, Machado desistiu do livro por não o considerar bom
|
Tudo começou com uma outra
descoberta - a do poema O Grito do Ipiranga que Machado de Assis publicou no
Correio Mercantil em 1856. O professor quis, então, escrever um livro sobre
esse texto, mas achou que precisava ampliar sua pesquisa para dar corpo à
obra.
Iniciou, assim, uma investigação sobre a presença de literatos em jornais.
Estava debruçado sobre os arquivos do Correio Mercantil na Hemeroteca Digital
Brasileira, lendo os textos de Macedo, Gonçalves Dias, Manuel Antonio de
Almeida, José de Alencar e Machado de Assis, quando se deparou com a seguinte
nota na primeira página: “Mais um volume de versos se anuncia, e podemos já
dizer mais um poeta se vai revelar. Modesto e muito jovem são, além de felizes
inspirações, qualidades bastantes para recomendarem o nome do Sr. Machado de
Assis, autor do livro cuja publicação se nos anuncia”. Machado era, então, um
garoto de 19 anos.
![]() |
'Correio Mercantil', 20 de agosto de 1858 |
Um
ano e meio depois sem que nada tivesse ocorrido, outra menção ao volume, em
janeiro de 1860. Agora, com mais detalhes: “Vai publicar-se uma coleção de
versos com o título de Livro
dos Vinte Anos. O autor é um moço que enceta apenas a carreira das
letras. Talento viçoso e original, o Sr. Machado de Assis promete mais um poeta
e um prosador distinto no país. Nas poesias ligeiras ou ensaios de prosa que
tem publicado até hoje, revela o Sr. Assis qualidades notáveis que recomendam o
seu nome. O público receberá sem dúvida o seu livro como merece o talento do
autor, que tem tanto de real como de modesto. Na atualidade é uma associação
rara”.
![]() |
'Correio Mercantil', 19 de janeiro de 1860 |
Lá se vai
mais um mês e um anúncio no Correio da Tarde traz novidades mais concretas. Ele
diz: Livro dos Vinte Anos por Machado de Assis. Um volume de 200
a 240 páginas; 2$. Assina-se nas lojas de costume e na tipografia do Sr. Paula
Brito, onde é impresso.
![]() |
'Correio da Tarde', 20 de fevereiro de 1860 |
E, então, fez-se um silêncio que
dura até hoje, 156 anos depois. Por que o livro nunca foi lançado? O número de
assinantes não foi suficiente para bancar a impressão nesta espécie de
crowdfunding do século 19? Machado não gostou do resultado do trabalho? Brigou
com o editor? Por que nunca se falou nesta obra?
Wilton
Marques fica com a hipótese da consciência literária de Machado e da
mudança de interesse. “Tem uma expressão de Jean-Michel Massa que diz que
Machado tinha uma autocrítica vigilante muito forte. Exigia muito do texto na
busca de um comprometimento com o dado estético, com a formalidade do texto
literário. E por isso ele jogava muita coisa fora”, comenta o professor. Vale
lembrar que quando organizou Poesias Completas (1901) – porque, como disse em carta
ao editor Garnier, queria deixar esta obra como sua bagagem poética –, ele
excluiu muitos poemas de outros títulos que ele mesmo tinha organizado. “Esse
exercício de autocrítica é muito forte e mais um indício de que ele abandonou o
livro.”
Fora isso,
Marques diz que os poemas do Livro
dos Vinte Anos seriam
da fase romântica de Machado – e ele discordava de seus ideais. E que àquela
altura o autor estava totalmente dedicado ao teatro – foi com peças, aliás, que
ele estreou na literatura.
A hipótese de
que os poemas do malogrado livro, como o professor escreve no artigo que será
publicado na revista Machado
em Linha até
dezembro, tenham sido incluídos em títulos posteriores também está fora de
cogitação. Ele lembra que o escritor datava seus textos e emCrisálidas (1864), por exemplo, só um dos poemas
é de antes de 1860.
José Luiz
Passos, escritor, professor de literatura brasileira da Universidade da
Califórnia (Ucla) e autor de Machado
de Assis: Romance Entre Pessoas, não conhecia essa referência, mas
imagina que o livro talvez não tenha valido a pena para Machado, e, por isso,
ele teria abortado a publicação. “Às vezes, ele apostava numa capacidade de
produção muito maior que as condições reais que ele tinha de execução”, comenta
Passos.
Isso, sem
contar com o compromisso e a tentativa de agradar – neste caso, mais tarde – a
seu editor Garnier, para quem prometeu, e nunca entregou, O Manuscrito do
Licenciado Gaspar e Histórias de
Meia-Noite. Passos comenta também sobre um libreto de ópera que ele
teria escrito, mas que nunca apareceu.
“Esses livros não realizados são
mais um exemplo da capacidade de produção imaginativa dele, dessa ambição de
colocar para fora, de publicar cada vez mais”, diz. E como boa parte de sua
produção era em jornais, o professor acredita que ainda há muito a ser
revelado. “A cada vez que se organiza uma coletânea dos contos de Machado,
sempre aparece algum texto – principalmente porque ele também escrevia sob mais
de 20 pseudônimos”, explica.
Passos, no
entanto, não conhece tantos anúncios da natureza dos encontrados por Wilton
Marques. “Esse Livro dos Vinte Anos foi uma surpresa e é mais uma
evidência de alguém que está tentando tudo – de contratos com editores a
colaboração em periódicos.” E Machado tinha ambição. Segundo o professor, ele
queria ser um autor clássico. “Ele se coloca ao pé dos grandes e não faz
literatura de ocasião.” Mais um motivo para se livrar dos poemas
românticos?
O crítico
Silviano Santiago, que acaba de entregar o manuscrito de Machado,
romance sobre os últimos quatro anos de vida do escritor, também nunca ouviu
falar do livro. “Mas como Carlos Drummond que não publicou o manuscrito que
enviou em 1925 a Mário de Andrade, e esperou 1930 chegar para publicar o volume Alguma Poesia,
Machado também deve ser elogiado por não ter tido a coragem de publicar esse
livro. Realmente, ambos os escritores não começam bem em matéria de escrita
poética. Pensando nesse tipo de carreira literária é que talvez se possa
entender melhor a célebre alegoria de Machado, que começa por dizer que “Cada
estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, etc.”, comenta.
Obra rara
Um volume da
primeira edição de Crisálidas,
o primeiro livro de poemas de Machado, foi incorporado ao acervo da Estante
Virtual este ano. A relíquia custa R$ 4.748. Há outras 30 obras raras no portal
que reúne sebos de todo o País.
[Fonte: www.estadao.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário