Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi
tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos
visitamos tão pouco.
Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais
de riqueza. Criou-se a ideia de que o estatuto do cidadão nasce dos
sinais que o diferenciam dos mais pobres.
Existem várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa
às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa
reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos como
sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho.
A modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos
também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa
modernidade de que sejamos também construtores.
No início, viajávamos porque líamos e escutávamos, deambulando em
barcos de papel, em asas feitas de antigas vozes. Hoje viajamos para
sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a nossa
própria vida.
A palavra “ler” vem do latim “legere” e queria dizer “escolher”. Era
isso que faziam os antigos romanos quando, por exemplo, selecionavam
entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está bem patente no nosso
termo “eleger”. Ora o drama é que hoje estamos deixando de escolher.
Estamos deixando de ler no sentido da raiz da palavra. Cada vez mais
somos escolhidos, cada vez mais somos objecto de apelos que nos
convertem em números, em estatísticas de mercado.
Todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a
nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos
impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor
nesta vida é poder escolher, mas o mais triste é ter mesmo que escolher.
É verdade que as novas tecnologias não costuram os buracos da nossa
roupa interior, mas elas ajudam a alterar as redes sociais em que nos
fabricamos.
[Trechos extraídos da versão em PDF do livro “E se Obama fosse
africano” do escritor Mia Couto – Disponível na internet via Companhia
das Letras - fonte: www.portalraizes.com]
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