Uma grande percepção de Amós Oz e de Fania
Oz-Salzberger é a de que o Deus de Israel é notadamente verbal. O Eterno ama
usar palavras. E Seu povo parece ter aprendido a amá-las com a mesma força.
Publicado por RAUL C. DE
ALBUQUERQUE
Estava passando tranquilamente com uma amiga pelo expositor central de
uma livraria no Recife, quando vi o livro "Os judeus e as palavras" do Amós Oz com sua filha, a historiadora
Fania Oz-Salzberger. O espanto foi inevitável. Eu já tinha lido algumas
resenhas em sites internacionais quando do lançamento em inglês do livro, em
2012, salvo engano. Lembro de, na época, ter ficado fissurado no assunto - que,
na verdade, sempre me interessou. Com um atraso de uns 3 anos em relação
àquelas resenhas, segue a minha.
Eu
conheço a literatura do Amós Oz há um bom tempo. Comecei por acaso lendo
"A caixa preta", de onde corri para "Judas" e "Cenas
da vida na aldeia". Todos livros muito bem demarcados
culturalmente: são judeus num mundo não judeu. O choque de
valores seculares contra o resistente mundo judeu está sempre na literatura do
Oz. O que se explica quando se diz que o Amós Oz é um judeu agnóstico
profundamente sionista.
Esse sionismo todo guia todo o
livro, mas não chega a incomodar quem discorda substancialmente do Oz. O foco
do livro é outro. E os escritores não escondem isso. Já
nas primeiras páginas, os autores explicam que a ideia que guia toda a obra é a
explicação de uma genealogia literária (e não literal) que constrói o mundo
judeu. A despeito
daqueles que usam a miscigenação para infirmar a tese da identidade judaica (e
com isso solapar a ideia de um Estado de Israel), Amós
e Fania soerguem a tese que eles próprios chamam, já no início do livro,
"povo geológico" cujos anais históricos devem ser medidos com outras
medidas.
"Se a Palavra - falada e
escrita, recitada e citada - é a verdadeira chave da continuidade judaica,
então qualquer tentativa de construir ou demolir o pedigree físico judaico deve
ser deixada de lado. Independentemente
da obrigação de casar-se dentro do rebanho, declarada desde Esdras e Neemias
até a corrente ortodoxia, a continuidade judaica nunca se calcou em linhagens sanguíneas.
[...] Nossa história não trata do papel de Deus, mas do papel das palavras.
Deus é uma dessas palavras." (p. 65)
Assim, os autores começam a construir uma
tese maravilhosamente inovadora: uma genealogia verbal. E,
desse modo, o livro torna-se um meta-texto: pai e filha escrevendo sobre
heranças verbais. O haver um livro escrito por pai e filha, em conjunto, sobre
a genealogia verbal judaica já fundamenta o mote. Como arrematam - abrindo mão
de uma modéstia que realmente seria inconveniente se houvesse -,"O Povo do
Livro exibe, portanto, longas linhagens que fazem perfeito sentido. Se você for
leitor." (p. 66)
A
profundidade e a verve de Amós Oz fundida ao conhecimento absurdo da Fania
Oz-Salzberger fazem o livro ser uma pérola para qualquer curioso, ou estudioso,
de História da Linguagem. Sem deixar de lado os registros
canônicos, os autores vão fundo na pesquisa sobre as fontes orais do povo
hebreu, com ênfase aos relatos mishnaicos e talmúdicos, trazendo imagens
maravilhosas de tempos imemoriais e inimagináveis, como a
discussão de um Rabi com o próprio Deus - debate em que Deus cede parcialmente
de sua interpretação.
Uma grande percepção dos autores é a de que
o Deus de Israel é notadamente verbal: Ele cria o mundo
fazendo uso de palavras; Ele ordena
que Moisés escreva a história do mundo e, principalmente,
que escreva os Mandamentos; Ele usa profetas para falar com seu povo, e às vezes dialoga diretamente com os eleitos; Ele ordena
que andem com filactérios atados ao corpo, com trechos
da Torá; Ele manda que os pais conversem com seus filhos sobre a Torá a todo
tempo. Enfim,
o Eterno de Israel ama usar as palavras.
Os judeus parecem ter aprendido
o amor às palavras, porque, como anotam os autores, "a profecia é mística, mas a exegese é
humana." Na suficiência da Escritura, os Rabinos restam
com a difícil missão e o imenso poder de interpretar o dito pelo próprio Deus,
porque, nos termos da Torá, "segundo a maioria deve se inclinar".
Assim, o conselho rabínico (que depois se tornaria um órgão judicante) torna-se
o legítimo intérprete da fala divina, com raríssimas concessões.
As
palavras de Amós e Fania abrem um verdadeiro abismo entre a tradição judaica e
a tradição cristã, evidenciando que se falar em
"tradição judaico-cristã" (expressão que eu mesmo usei muito na vida
acadêmica) é de um reducionismo espartano incalculável. Os
autores destacam na tradição judaica um "chuzpa", um descaramento, um
atrevimento diante do Eterno, uma ausência de pudor em negociar com o próprio
Deus. Coisa que nunca se vê na tradição cristã.
Além desses apontamentos
incríveis, Fania Oz-Salzberger lembra-nos de que nenhuma tradição antiga teve tantas
mulheres vocais. Ela recorda que, segundo o relato bíblico,
todas as mulheres de Israel seguiram Miriam cantando depois que atravessaram o
Mar Vermelho; também Débora cantou seus hinos do alto do posto de juíza em
Israel; ainda Ana, a ex-estéril, tem registrado seu canto in
verbis no livro
escrito por seu livro, o profeta Samuel. À semelhança do seu Deus, as mulheres
hebreias são profundamente verbais e vocais.
A
despeito da construção rabínica de silêncio feminino, a autora anota que o
relato bíblico, e mesmo o talmúdico, nunca silenciou as mulheres. Além disso,
não citam mulheres apenas como cantoras ocasionais, mas também como
conhecedoras da tradição e hábeis utilizadoras desta. Tamar,
por exemplo, usa a tradição para retomar seu posto de parente de Judá, o
patriarca, numa história eletrizante que termina com uma frase clássica:
"E disse Judá: 'Ela é mais justa do que eu!'"
Ainda sobre as mulheres vocais,
os autores ressaltam figuras como a de Osnat Barazani: judia e rabi, a
despeito de toda a estrutura patriarcal. Seu nome é citado com
louvor, em virtude do poderio de seu conhecimento, em meio a um mar de homens
velhos. Ademais, não são raros os casos de rabinos que, ao alcançarem tal
status, deixam claro que ali estão em razão do trabalho intelectual de suas
mães. "As crianças e os livros. Os ossos da continuidade." (p. 114)
E
ninguém diga que esta tradição incita o engessamento do conhecimento. Na
criação dos filhos, o espírito "chuzpa",
descarado, atrevido, intrometido, volta. Como lembram os escritores:
"Não
importa que a Torá seja inteira e eterna. Não importa que as cabeças mais
formidáveis da história judaica estejam observando você do banco simbólico no
fundo da classe. Espera-se que todo garoto no seu Bar Mitsvá, todo noivo em seu
dossel matrimonial, diga uma chidush. Uma novidade. Não uma mera repetição da
sabedoria antiga. [...] Mas de fato apresentar uma ideia nova, uma
interpretação fresca, um elo inesperado. Cercado de gigantescas estantes de
livros, você ainda é convidado a fazer uma declaração original."
Amós Oz e Fania Oz-Salzberger, juntos, numa
rara união de profundidade e graça, contam uma história maravilhosamente verbal
e incrivelmente atual. Eles afundam-nos num mar de palavras e imagens até que
cheguemos à fossa abissal em que surgiu o primeiro ato de linguagem - e não nos
afogamos, antes enchemos a alma e os pulmões de um silêncio tão cheio de
significados quanto as tábuas que Moisés trouxe nos braços quando desceu do
Sinai.
Melhor livro de não ficção do
ano. Sem mais.
[Fonte:
www.obviousmag.org]
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