A arbitrariedade do perdão inspira escritor espanhol
Por UBIRATAN
BRASIL
Na
Madri pós-ditadura franquista do início dos anos 1980, a resposta ao sufoco se
traduziu em uma mistura de drogas, boemia e liberalidade sexual. É nesse
ambiente marcado pelos ares da democracia que começa a história do jovem Juan
de Vere, um recém-formado que vai trabalhar como secretário pessoal de um
famoso cineasta. Ao se envolver com esse meio, ele se transforma em espectador
(depois, em personagem) de um ambiente cujas iniciativas são questionáveis.
Esse é o fio da meada de Assim Começa o Mal, romance de Javier Marías, lançado agora pela
Companhia das Letras. É um verso de Hamlet, de Shakespeare, que inspira o
título e também anuncia a intenção da escrita do autor, um dos mais importantes
da moderna literatura espanhola. Do desejo sexual à arbitrariedade do perdão, a
obra de Marías apresenta a vida privada de pessoas em um momento de
relaxamento. Sobre o livro, ele respondeu por e-mail.
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Marías. Título foi inspirado em frase de 'Hamlet' |
Assim Começa o Mal não é uma continuação de Os
Enamoramentos, mas complementa de maneira individual sua obra. Como
qualificaria este livro em seu trabalho?
Não
saberia dizer. Não tenho um “plano” para o conjunto da minha obra. Toda vez que
termino um romance, sequer sei se haverá algum outro, nem quando. Costumo
escrever quando algo me inquieta ou me interessa o bastante, na minha própria
vida, para ocupar-me dele de forma romanceada. A esta altura, é normal que haja
alguns temas ou assuntos que me importam, e que frequentemente reaparecem nos
diferentes romances - espero que não como uma mera repetição, mas como
aprofundamentos nessas questões. É evidente que existem pontos em comum entre
Assim Começa o Mal e Os Enamoramentos, mas também entre aquele e Coração Tão
Branco ou Seu Rosto Amanhã. Em todos eles, aparecem temas como a
impossibilidade de saber com certeza o que quer que seja, ou a possível
conveniência de não saber algo; ou o engano e a traição e o segredo. Vou
escrevendo o que me vem à mente e, se um dia eu me repetir excessivamente, os
leitores, cansados, me avisarão. Eles se cansarão dos meus romances e saberei
que não devo fazer mais isso.
O perdão é um dos temas
principais do livro. Acredita que hoje o ato de perdoar é menos constante?
Quero dizer, o perdão parece mais um ato egoísta do que humanitário?
Atualmente,
há uma grande confusão a respeito do perdão. Para os que não são religiosos, o
perdão tem algum sentido se o ofensor o pede antes e deseja ser perdoado. Não
vejo hoje muitos ofensores assim, realmente, sinceramente arrependidos. Às
vezes, “exige-se” o perdão para “seguir adiante, para outra coisa”, para
“avançar”, sem que os ofensores acreditem que o devem pedir ou solicitar. Cada
vez é mais frequente que se “exija” das vítimas (novamente) o esquecimento,
“para o bem da sociedade”. O que leva a um aumento da impunidade. Também é
certo que a represália contínua, ou a vingança contínua, pode ser algo
paralisante para um país. Nunca sei com certeza se o melhor é avançar e
esquecer ou manter-se fixo no passado e recordar permanentemente os agravos e
os crimes. Creio que é um dilema que nunca conseguirei resolver: eu mesmo
encontro frequentes contradições em minha posição a este respeito.
O próprio desejo sexual se
converteu, para algumas pessoas, no motocondutor social, principalmente quando
se trata da promoção social ou profissional. As pessoas se definem mais por
aquilo que não são?
É difícil
saber o que uma pessoa é e o que não é, não acha? Em todo caso, sim,
indubitavelmente muitas pessoas veem suas relações sentimentais ou sexuais como
um “ativo”, como um benefício que lhe é acrescentado. Não só como antigamente,
quando alguém com recursos escassos casava com uma herdeira ou com um homem
endinheirado. Agora, também existe o fenômeno de pessoas que alcançam a fama e
o dinheiro pelo simples fato de terem sido casadas ou amantes de uma
celebridade. Ou de alguém bem situado em qualquer campo, talvez profissional,
na maioria das vezes. Ter amantes que chamam a atenção tornou-se uma forma de
promoção, sem dúvida. É a utilização das pessoas quase sem fingimento nem
dissimulação.
Mais uma vez, Shakespeare
inspirou o título do livro. Que lições o bardo inglês nos ensina hoje? Acredita
que “o pior fica para trás”?
Veja bem,
é uma coisa curiosa: meus personagens entendem a citação de Shakespeare como
“Assim começa o mal e o pior espreita atrás”. Entretanto, muitos tradutores (em
diferentes línguas) e exegetas entendem a frase justamente ao contrário: “Assim
começa o mal e o pior espreita por trás”, ou seja, “ainda está por vir”.
Shakespeare é ambíguo até em frases que parecem simples, numa primeira
instância, como esta. E este é um dos seus ensinamentos: quase tudo é
misterioso e obscuro, por muito que hoje se acredite que há grande
transparência e que se conhece mais do que nunca. Quase tudo é complexo,
ambivalente, indeciso. É uma grande lição em um mundo regido cada vez mais
pelas simplificações e pela falta de nuances e de claros-escuros. Ao contrário,
seu mundo e sua obra estão repletos de claros-escuros e de penumbras. E, na
minha opinião, o mundo de hoje, apesar de todas as aparências, continua sendo
assim, em essência. Eu procuro refleti-lo no que escrevo.
Este não é um romance sobre
cinema, mas há muitas referências cinematográficas conectadas à realidade dos
personagens. Por que os filmes são tão importantes em seu trabalho?
Bom, meu
primeiro trabalho, quando tinha 17 anos, foi para meu tio Jesus Franco ou Jess
Frank, diretor de cinema que trabalhou com atores como George Sanders, Klaus
Kinski, Christopher Lee, Jack Palance e Herbert Lom. Os dois últimos aparecem
no romance, e eu os conheci brevemente durante as filmagens do meu tio. Por
outro lado, sempre fui um grande apreciador de cinema, um gênero eminentemente
narrativo como o romance, e vejo os dois muito unidos. Creio que John Ford,
Alfred Hitchcock ou Orson Welles me influenciaram tanto quanto Conrad, Proust
ou Faulkner. Meus romances não são muito fáceis de adaptar para o cinema; por
outro lado, acredito que neles há cenas que o leitor “visualiza” muito bem. E
devo isto ao cinema, seguramente, mais do que à literatura. Mas, é claro que
meus romances também estão repletos de reflexões e digressões, e, sem dúvida,
devo estas mais a Sterne, Proust ou Henry James, à literatura em geral.
O romance está ambientado na
década de 1980, quando Pedro Almodóvar começou sua carreira com filmes de
grande conteúdo libertário. O senhor diria que estas películas e seu romance se
complementam entre si?
Não. Tenho
certa amizade por Almodóvar e aprecio muito alguns dos seus filmes (não todos).
Mas sua visão e seu estilo pouco têm a ver com os meus. Meu romance se passa em
1980, mas justamente não quis fazer uma “ambientação” da época, além do que
exigia a verossimilhança. Não me interessa “recriar” uma época. Minhas
lembranças de 1980 são nítidas, e são parte da minha vida, e, como todo mundo,
uma pessoa vê sua própria vida como um ‘continuum’, não percebe que há tantas
diferenças entre o vivido aos 25, aos 45 ou aos 60 anos. Para mim, 1980 é parte
do “presente’. Almodóvar tratou destes anos justamente quando eram presente
absoluto, não podia ter um olhar retrospectivo, como o que tem o narrador do
meu romance, Juan de Vere, que escreve sua história quando já é um homem
maduro, até o ano 2010 ou por aí. Ele lembra de si mesmo aos 23 anos, e o
protagonista é este jovem. Mas o que narra é este mesmo jovem quando já, de
modo algum, ainda o é. E isto lhe permite fazer considerações como esta: “Os
jovens têm a alma e a consciência atrasadas”. O que um jovem jamais diria, nem
seguramente o próprio Almodóvar.
Qual é sua opinião a respeito
da monarquia espanhola? Que papel ela deveria ter? A monarquia ainda ajuda para
encobrir atitudes políticas corruptas?
Não. A
monarquia não tem nada a ver com as atuações corruptas dos políticos. A
monarquia espanhola está muito limitada. Dizem que o rei reina, mas não
governa, e é isto mesmo. Não sou monarquista, mas devo reconhecer que, sob Juan
Carlos I, a Espanha viveu seu mais longo período de liberdades e democracia, o
mais longo de toda a sua história. E, sendo o meu país como é (vingativo,
invejoso, sectário), ninguém teria o menor respeito por um hipotético
presidente da República: ele seria um permanente objeto de ataques. Não que o
Rei não seja atacado, mas é importante uma figura fora de qualquer partido, que
não está manchada pela luta pelo poder, que não intervém nas decisões injustas
e arbitrárias de muitos políticos. Não me parece ruim que haja uma figura -
embora mais simbólica do que outra coisa - que não manda nem ordena, nem
intervém nos assuntos do país, mas está presente. Creio que esta presença é, em
conjunto, mais benéfica do que prejudicial. E não quero nem imaginar como
presidente da República algum dos personagens nefastos que poderiam ser eleitos
se este cargo fosse submetido a votação.
ASSIM COMEÇA O MAL
Autor: Javier Marías
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras (512 págs., R$ 49,90
impresso, R$ 34,90 e-book)
[Fonte: www.estadao.com.br]
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