Romance 'A linha azul' mistura ditadura argentina a temas sobrenaturais
Por MARIANA FILGUEIRAS
Sete anos se passaram desde
que Ingrid Betancourt foi libertada do cativeiro das Farc, na selva colombiana,
onde fora capturada por guerrilheiros durante sua campanha presidencial, em
2002. Desde a soltura, Ingrid divide seu tempo entre Paris e Nova York, onde
vivem seus dois filhos, e Oxford, na Inglaterra, onde termina o doutorado em
Teologia. Nunca mais voltou à política ou à Colômbia, embora não descarte nem
uma opção nem outra — e para breve, como antecipa nesta entrevista.
Nesse meio tempo, lançou o livro de memórias “Não há silêncio
que nunca termine”, em que descreveu detalhes perturbadores de sua rotina nos
seis anos e quatro meses de cativeiro. Milhares de cópias foram vendidas em
todo o mundo. Mas Ingrid não aguentava mais falar do trauma e, para tomar
distância do tema, começou a escrever seu primeiro romance, que acaba de ser
lançado no Brasil: “A linha azul” (Alfaguara).
Distante da Colômbia dos anos 2000, a trama esmiúça as
violências da Argentina durante o período ditatorial, nos anos 1970. E conta a
história de um casal, Julia e Theo, que tenta ficar junto, apesar de capturado
pelos militares. O realismo trágico de Ingrid — que descreve cenas de torturas
de seus personagens com a precisão de quem passou por terror semelhante — é
suavizado pelos ecos de realismo mágico da narrativa. Julia tem o estranho dom,
herdado da avó, de prever o futuro. Da França, Ingrid conversou com O GLOBO.
Sua relação com a imaginação mudou desde o cativeiro?
No cativeiro, a imaginação era muito presente, era o que me
enchia de esperança. Era a chance de me libertar. Hoje a minha imaginação é
muito mais lúdica. Na selva, a minha imaginação estava aguçada sobre minha
experiência pessoal e sobre o que eu podia fazer; ao escrever, minha imaginação
se projeta sobre personagens que têm sua autonomia de vida, seu caráter, sua
experiência. De alguma maneira, é um caminho muito similar porque a gente nutre
os personagens do romance com coisas muito intimas. Um personagem vive do que o
autor divide de sua própria vida com ele. É como se a experiência que cada um
teve na vida pudesse formar ou compreender o que um personagem poderia viver. É
muito interessante.
Por que escrever sobre a ditadura argentina dos anos 70?
Este romance nasceu de um encontro com uma pessoa específica.
Em Oxford, eu estava lendo muito sobre a Teologia da Libertação e chamou muito
minha atenção a história de um sacerdote argentino que era filho de uma família
de políticos muito influente. Ele já havia viajado muito e tinha grande beleza
física quando tomou a surpreendente decisão de ser sacerdote. Poderia ter-se
tornado qualquer coisa que desejasse, mas preferiu a luta social por meio do
sacerdotismo e tornou-se um porta-voz das camadas mais pobres. E ele morre
justamente quando o país tem a sensação de que os pobres ganharam contra as
forças de poder de Perón. Essa história me pareceu muito interessante.
E foi daí que surgiu o livro?
Eu já vinha pensando em escrever um romance e, um dia,
durante uma viagem a trabalho pela Austrália, tirei um dia de folga para
descansar numa praia. Queria admirar a barreira de corais, essas coisas, quando
uma senhora me abordou: “Você é Ingrid Betancourt? Li seu livro, posso falar
com você dois minutos?” Eu estava de roupa de banho... E ela começou a me
contar sua história: era argentina, havia entrado no grupo dos Montoneros nos
anos 70, e havia conhecido o padre Mugica, justamente aquele sacerdote. Os dois
minutos viraram horas. Hoje somos grandes amigas. Ela me falou sobre as
torturas que passou, a morte do homem que amava, a perda do filho, pois estava
grávida quando foi presa. Ela me disse: “Sempre imaginei o dia em que
descobrisse que ele estava vivo”. E eu pensava em como a vida é estranha e
dura. Algumas vezes, a melhor coisa que se tem é a própria imaginação. Concluí que
precisava escrever sobre aquilo, contar a história de personagens que passassem
por uma situação traumática como aquela. Foi quando criei Julia e Theo.
E por que optou pelo clima de “realismo mágico” que tem a
trama?
A busca espiritual, a crença no paranormal, hoje em dia, é
algo muito comum. É algo que muitas pessoas vivem, comentam, não acho que seja
motivo de estranhamento. Acredito que o mundo esteja se abrindo para entender
um lado mais...
...holístico?
Holístico é uma boa palavra,
porque quer dizer justamente a recusa da fragmentação para o conhecimento do
homem. É entender que o homem é um todo indivisível: seu lado psíquico, físico,
psicológico etc. Uma das coisas que eu queria mostrar neste romance é, digamos,
a liberdade que queremos dar a nós mesmos para nos abrirmos a outros tipo de
conhecimento. Estamos vivendo em um mundo em que o tempo todos valorizamos o
que pode ser identificado como verdadeiro ou falso. Mas há muitas coisas que
não se pode dizer que são falsas ou verdadeiras, e que não deixam de ser
impactantes. Queria também fazer por isso: na vida, todas essas situações
terríveis que podem acontecer a um ser humano, como no caso de Julia, não
findam sua conexão com o infinito, quero dizer: esta capacidade de Julia de se
conectar com o futuro de outras pessoas é, na realidade, o que podemos chamar
de compaixão. Além disso, este lado mais místico do romance pode atrair certo tipo de público para o assunto que é tratado com mais profundidade na
trama, que são os efeitos da ditadura argentina.
As cenas de tortura do romance
são muito duras. Como foi para você escrevê-las? Por que se submeter novamente
às memórias de violência?
Ao escrever essas cenas, eu quis homenagear as pessoas que
foram torturadas pela ditadura argentina. Uma homenagem, aliás, a todos que
estão sendo torturados neste momento no mundo. Não parecia respeitoso escrever
sobre um tema como os desaparecidos da Argentina, a tortura, sem fazer o leitor
compreender e ter a dimensão da gravidade da situação.
A ditadura argentina é um dos temas mais batidos da ficção
latino-americana contemporânea. Você leu muitos romances sobre o período?
Não romances, mas li muito material histórico. Falei com
muitas vítimas da ditadura que sobreviveram e hoje em dia vivem na Europa. Mas
por mais que se fale, e há bibliotecas inteiras sobre o assunto, nunca parece
ser suficiente.
Por que a Colômbia será o último país em que você lançará o
livro?
Porque penso que é importante que o romance tenha sua vida na
América Latina e em outros países antes, para que os colombianos não vejam o
livro como uma critica à Colômbia, porque não é. É apenas uma reflexão sobre
como reagimos frente a mudanças políticas. E o ódio nunca é a resposta correta.
O ódio só faz aumentar o problema. É mais ou menos o que está acontecendo agora
na Europa, com este problema dos refugiados.
Como você vê este problema, sendo uma colombiana na França?
Os países que estão construindo muros para impedir que os
imigrantes escapem da guerra e da fome são os mesmos que entraram na União Europeia
quando caiu o muro que os mantinha sob opressão e pobreza. Essas imagens de
muros sendo levantados em países como a Hungria mostram um problema: quais são
os valores que estão sustentando a Europa? A Europa que conhecemos se formou em
um ambiente terrível de guerras. E a Europa como identidade se constrói como
uma reação a este horror. E agora estamos vendo como a Europa está reagindo ao
mesmo problema que motivou sua construção.
Isso a assusta?
Por incrível que pareça não. Me dá esperança. A Europa é o
continente da liberdade, da fraternidade e da igualdade, por isso é que as
pessoas fogem para lá. A Europa vive um reconhecimento do seu desenvolvimento
social.
Hoje em dia você se considera
mais escritora do que ativista?
Escrevo sempre para mudar o mundo. Este romance nasce disso. Não é diferente do
que eu fazia no Congresso. A atividade principal no Congresso é comunicar. É o
que este romance faz. Também é um manifesto do que me parece importante
defender agora, os valores. A maneira como Julia enfrenta seu medo, o horror,
tudo isso são valores que são guias, também, de ação política.
A ficção é um caminho que pretende seguir? Ou a política
ainda te instiga?
Voltar à política passa pela minha cabeça, claro. Estou
buscando mecanismos de voltar, sim, não descarto, mesmo que seja aqui na
Europa. Mas poder escrever um romance como este também é fazer política.
[Foto: Melanie Delloye –
fonte: www.oglobo.globo.com]
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