Por MARCO RODRIGO ALMEIDA
Boris Schnaiderman já enfrentou os nazistas, a ditadura
militar, uma arritmia cardíaca e um câncer de intestino. Sobreviveu a tudo
isso. Venceu ainda outro inimigo implacável, o passar do tempo.
O senhor que recebeu a Folha em
seu apartamento caminha com firmeza, fala com elegância, relembra detalhes com
precisão espantosa. É difícil acreditar que tenha realmente 98 anos.
"Mas os documentos não
negam. São 98 anos bem batidos, e vividos com muita intensidade", conta
ele.
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Boris Schnaiderman aos 98, em seu apartamento em São Paulo. Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress |
Não
faltam mesmo histórias, e lutas vencidas, na trajetória de Boris Schnaiderman.
Nascido na Ucrânia em maio de 1917, veio com os pais para o Brasil em 1925 -um
pouco antes presenciou a filmagem de um dos momentos sublimes da história do
cinema, a cena da escadaria de Odessa de "O Encouraçado Potemkin"
(1925), do diretor Sergei Eisenstein.
Boris
tornou-se o principal tradutor literário do russo no Brasil (verteu clássicos
de Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov), o primeiro professor do curso de língua e
literatura russa da USP, em 1960, e um ensaísta renomado.
Uma
vida que poderia render páginas e mais páginas de um livro de memórias -e Boris
realmente as escreveu, mas, um tanto por modéstia, um tanto por pudor em ferir
a memória de alguém, achou por bem interromper o trabalho.
Resolveu
então ater-se a um momento específico, o mais duro combate de sua vida. Boris
foi um dos 25 mil homens enviados pela Força Expedicionária Brasileira (FEB)
para lutar na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
O
tema já havia inspirado o romance "Guerra em Surdina" (1964),
primeira e única incursão de Boris na ficção. Agora ele o retoma no relato
autobiográfico "Caderno Italiano", compilação de textos novos e
antigos lançada pela editora Perspectiva.
"Da
primeira vez narrei o que aconteceu ora comigo ora com companheiros. Tudo
misturado com partes imaginadas. Mas eu não sou um ficcionista, só sei fazer
autobiografia. Por isso retomei de outra maneira esse tema que tanto me
marcou", explica.
UM
PACIFISTA NO FRONTE
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Boris Schnaiderman aos 28 anos, dois dias depois do fim da 2ª Guerra, em 1945 [arquivo pessoal] |
A
convocação para a guerra é retratada como um momento de pânico em muitos filmes
e livros sobre combatentes. Com Boris foi diferente. "Na verdade, eu fiz
com que me convocassem."
O
futuro tradutor formou-se em agronomia em 1940, mas para registrar o diploma
teve que se naturalizar brasileiro e prestar o serviço militar.
Prevendo
que a participação do Brasil no conflito seria inevitável, exagerou tanto as
próprias habilidades para o serviço ativo que não teve dúvidas de que seria
recrutado para a guerra na primeira oportunidade.
Foi com júbilo que em certa manhã de 1944 encontrou seu nome na relação dos convocados. Os pais ainda tentaram livrá-lo da convocação, mas Boris já estava decidido.
"Sempre fui um pacifista convicto, mas estava convencido de que aquele era o caminho certo. Ainda não se tinha notícia da extensão daquilo que viria a ser chamado de Holocausto, mas tudo parecia indicar que estava em desenvolvimento", diz. "Há ocasiões em que não há outro jeito. É preciso lutar mesmo."
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O
turbulento clima político do período era uma preocupação constante para o
autor. Ele conta no livro que chegou a desmaiar ao ouvir pelo rádio um discurso
de Getúlio Vargas que parecia abrir brechas para a adesão do Brasil às forças
fascistas.
Também
ficou decepcionado com o comunismo, depois que a Alemanha e a União Soviética
assinaram um pacto de não agressão, em 1939.
Pouco
depois os alemães invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra.
Boris
passou mais de um ano em solo italiano, entre 1944 e 1945. Era calculador de
tiro da artilharia, um dos responsáveis por determinar o deslocamento dos
canhões.
"Eu
mesmo não disparei tiros lá, apenas em exercícios, mas passei por muitos
momentos perigosos. Foi quase um milagre não ter sido ferido", relembra.
SUSTOS
MORTAIS
Um
desses momentos ocorreu no povoado de Silla, onde os brasileiros ficaram
instalados diante de uma ponte constantemente bombardeada. Para despistar o
inimigo, instalaram no local máquinas fumígenas.
Além
de viveram dentro de uma nuvem de fumaça, os soldados se depararam com um
inverno rigorosíssimo, de temperaturas de até 20 graus Celsius negativos.
Tanta
fumaça, no entanto, acabou por confundir um aviador norte-americano, que
metralhou um prédio de soldados aliados pensando que atirava em equipamentos
alemães.
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"Eu
estava diante da janela quando vi o avião com o cano dirigido para nosso
prédio, cuspindo fogo. Recuei imediatamente para a quina da janela, e meus
companheiros se jogaram no chão. Foi um belo susto."
Boris
também participou do ataque ao Monte Castello (norte da Itália), a mais
simbólica batalha brasileira na guerra. Depois de algumas derrotas duras, os
brasileiros venceram a resistência alemã e conquistaram o monte em fevereiro de
1945.
Boris
conta ter ficado mais de 48 horas ininterruptas fazendo cálculo de tiro na
ocasião.
A
vitória foi uma surpresa para ele, que esperava um desastre total da FEB.
"Eu
achava que o homem precisava ter consciência, se identificar com a causa, para
poder lutar bem. A maioria do nosso exército era contra a guerra, não tinha
consciência do que estava em jogo", diz.
"Eram
homens destreinados, vindos de um país sob ditadura, para lutar pela democracia
na Europa, contra inimigos poderosos. E no entanto eles se saíram bem, tão bem
quanto os melhores exércitos. Achei incrível isso."
Como
em geral ocorre entre os combatentes, Boris criou um laço forte com seus
companheiros de exército.
Dos
que lutaram com ele, dois ainda estão vivos, mas um já completamente
desmemoriado.
"Essa
é a parte triste de envelhecer. Você vai perdendo muitas pessoas."
Fora
isso, não tem muito do que se queixar. A saúde deu uma vacilada nos últimos
anos -Boris colocou um marca-passo e teve um câncer-, mas segue com energia
invejável.
Em
seu apartamento rodeado de livros por todos os lados, continua a trabalhar.
Nos
últimos anos, vem-se dedicando a reelaborar suas antigas traduções com a ajuda
da mulher, a professora de comunicação e semiótica da PUC-SP Jerusa Pires
Ferreira, 77.
Ainda
tem fôlego para caminhadas diárias e para ler os muitos livros que recebe toda
semana.
Come
praticamente de tudo e, vez ou outra, bebe as cachaças mineiras de que tanto
gosta.
"As
doenças deixaram alguma sequelas, mas dá para aguentar. Meu organismo reage
bem. Ainda estou firme."
CADERNO ITALIANOAUTOR: Boris Schnaiderman
EDITORA: Perspectiva
QUANTO: R$ 45 (192 págs.)
EDITORA: Perspectiva
QUANTO: R$ 45 (192 págs.)
[Fonte: www.folha.com.br]
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