Dia desses (re)ouvi a antológica "Vai Trabalhar, Vagabundo", que o grande Chico Buarque compôs em 1976 para o filme homônimo, do saudoso e também grande Hugo Carvana. Fazia muito tempo que eu não ouvia essa música, cujo tema é atualíssimo –intemporal, na verdade.
Na letra da
canção, encontram-se estes versos: "Parte tranquilo, ó irmão / Descansa na
paz de Deus / Deixaste casa e pensão / Só para os teus / A criançada chorando /
Tua mulher vai suar / Pra botar outro malandro / No teu lugar".
Como exige o
contexto da letra, Chico escreveu os últimos três versos sem nenhuma vírgula.
Postos em prosa, teríamos esta redação: "Tua mulher vai suar pra botar
outro malandro no teu lugar". Dessa forma, "malandro" faz par
com "outro"; a expressão "outro malandro" funciona como
complemento da forma verbal "botar". Em suma, o que se diz é que a
mulher do indivíduo em questão vai suar para botar outro malandro no lugar do
agora ex-titular do posto. É claro que não se deve ignorar a possibilidade de
haver boa dose de ironia na letra.
Posto isso,
pergunto: o que ocorreria se o termo "malandro" fosse posto entre
vírgulas? Teríamos isto: "Tua mulher vai suar pra botar outro, malandro,
no teu lugar". E então? Isso é possível? Sim e sim, caro leitor. O sentido
sofre alteração? Sofre, sim. O termo "malandro" deixaria de fazer par
com "outro" e passaria a constituir um vocativo, que, como se sabe, é
o termo ao qual o emissor dirige a mensagem.
É da
natureza do vocativo a possibilidade de "passear" pela frase, sem que
isso acarrete nenhum tipo de alteração de sentido. Esse passeio não pode ser
desvinculado da pontuação, já que o vocativo é SEMPRE marcado com vírgula/s:
"Malandro, tua mulher vai suar pra botar outro no teu lugar";
"Tua mulher, malandro, vai suar pra botar outro no teu lugar";
"Tua mulher vai suar, malandro, pra botar outro no teu lugar";
"Tua mulher vai suar pra botar outro no teu lugar, malandro". Para
quem ainda acha que a vírgula é um instrumento pulmonar...
É provável
que você já tenha ouvido uma bobagem sobre o uso da vírgula, que diz que
"a vírgula serve para respirar; cada vez que se respira,
coloca-se...". Ai, ai, ai...
Ainda sobre
o tema "pontuação", veja este título, publicado terça-feira na Folha:
"Renan diz que a PF invadiu imóveis do Senado; Collor, que foi
humilhado". Por que a vírgula entre "Collor" e "que"?
E por que foi empregado o ponto e vírgula?
Comecemos
pela vírgula, que nesse caso marca a elipse da forma verbal "diz",
subentendida pela sua primeira ocorrência. Não houvesse a elipse, teríamos
isto: "Renan diz que a PF invadiu imóveis do Senado; Collor diz que foi
humilhado".
E o ponto e
vírgula? Separa dois blocos que são completos, independentes, e integram um
mesmo conjunto, um mesmo assunto. É como escalar (à moda antiga) um time de futebol,
em que os compartimentos são separados por ponto e vírgula: "Félix, Carlos
Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson e Rivellino; Jair, Tostão
e Pelé". Percebeu o papel do ponto e vírgula, caro leitor? O primeiro
separa a defesa do meio de campo; o segundo, o meio de campo do ataque. E eu
acabo de dar outro exemplo do que estava a explicar. E acabo também de suspirar
de saudade desse timaço, que jogava uma bola com a qual os "craques"
de hoje nem sonham. É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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