Morta em 2002, escritora foi homenageada pelo pernambucano Marcelino
Freire na Flip
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Combativa. Noémia fez poemas contra poder colonial |
Por MATEUS CAMPOS
Quando o escritor pernambucano Marcelino Freire deixou a última mesa da
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), depois de emocionar a plateia
ao ler um poema da moçambicana Noémia de Sousa, foi logo cercado pelos colegas.
O queniano Ngugi wa Thiong’o e o irlandês Cólm Tóibín queriam mais. Autor de
“Contos negreiros” (Record), Freire encantou o público e os escritores com o
texto “Súplica”, retirado do único livro publicado por ela em vida, “Sangue
negro”, que ainda é inédito no Brasil.
Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares, nascida em 1926 e morta em
2002, é pouco conhecida deste lado do Atlântico. Talvez por isso, existem raros
registros de sua passagem por aqui, durante a primeira metade do século.
— Há muita dificuldade de estabelecer uma sequência cronológica exata na
biografia dela — diz a pesquisadora baiana Carla Sousa, da Universidade
Estadual da Bahia, especialista na obra de Noémia. — Essa carência de
informações a respeito do período é uma das questões que eu discuto nos
congressos de que participo. Não consegui encontrar muita coisa específica, nem
na Universidade de São Paulo, que é um centro importante de estudos da
literatura africana.
Sabe-se que Noémia fez amizade com Jorge Amado, a quem dedicou um poema.
Sobre a similitude entre as duas nações, que comungam a língua portuguesa, ela
escreveu: “Aqui, nesta povoação africana/ O povo é o mesmo também/ É irmão do
povo marinheiro da baía,/ Companheiro de Jorge Amado,/ Amigo do povo, da
justiça e da liberdade”.
— O Brasil não
conhece essa poesia africana que tão bem nos fala de nosso mundo, desse laço
ancestral, essa história “negra” que nos une. Noémia é considerada a mãe dos
poetas moçambicanos e só foi publicada aqui em algumas poucas antologias —
lembra Freire. — Falta, por aqui, a publicação integral de sua poesia. Mesmo em
Moçambique, ela só foi lançada graças aos poetas que fizeram um esforço para
juntar, em um volume só, os poemas que ela publicava, de forma esparsa, em
jornais, revistas e folhetos políticos.
Marxista, Noémia costumava declarar que não via sentido em reunir em
livro sua produção. “Sangue negro” veio em 2001 pela Associação dos Escritores
Moçambicanos, pouco tempo antes de sua morte, aos 76 anos, na cidade portuguesa
de Cascais. Dez anos depois, a editora Marimbique publicou uma nova versão.
Ela queria que seus poemas fossem lidos de mão em mão, através de textos
avulsos, fotocopiados pelos moçambicanos. A escritora, que também era
jornalista, colaborou com revistas e publicações como “Mensagem”, “Itinerário”,
“Notícias do bloqueio”, “O brado africano”, “Moçambique 58”, “Vértice” e “Sul”.
— Quando estão nos jornais, os poemas ganham repercussão. Ela queria que
o povo se mobilizasse, reagisse. Evoca a necessidade do surgimento de um
movimento revolucionário. Por isso, se recusava a publicar livros. Queria que
seus textos fossem lidos pelo povo, ensinados nas escolas — diz Carla, que
escreveu as teses “Noémia de Sousa: Modulação de uma escrita em turbilhão” e
“Sob o signo da resistência: a poética de Noémia de Sousa no período de
1948-1951 em Moçambique”.
PSEUDÔNIMO CONTRA A REPRESSÃO
Sua poesia combativa, impregnada das turbulências políticas vividas por
Moçambique, pregava abertamente o fim do colonialismo. Em 1948, aos 22 anos,
ela publicou na imprensa seu primeiro poema: “Canção fraterna”. O período de
criação foi intenso, mas durou pouco. Noémia escreveu todos os seus poemas até
1951. Para burlar a repressão, adotou pseudônimos. Primeiro, assinava N. S.
Depois, escolheu Vera Micaia.
Com José Craveirinha, conterrâneo do bairro de Mafalala, na capital,
Maputo, criou o movimento Negritude, influenciado pelo neorrealismo português.
A exaltação dos valores africanos contra o racismo da metrópole era o ponto em
comum de suas produções intelectuais.
— Ela sintetiza isso quando
diz, em “Súplica”, que o mundo é um tabuleiro de xadrez. É uma luta dos pretos
contra os brancos — diz Clara.
O engajamento a levou à prisão. E a prisão, ao exílio. Em
1951, Noémia fugiu para Portugal, onde trabalhou na Reuters e na agência Lusa.
Anos depois, foi viver em Paris, onde também trabalhou na embaixada do
Marrocos. Seus problemas com o poder colonial só cessaram em 1975, quando o
regime salazarista chegou ao fim em Portugal. Durante o conflito de libertação,
ela aderiu à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), mas depois acabou se
afastando. Finalmente, a partir da independência, ainda em 1975, sua produção
poética passou a ser estudada nas escolas locais.
— A vingança, a dor, o grito, o vexame lírico, a exaltação à
alma negra, tudo nela é munido de força. A palavra não chega frígida, tímida.
Chega cheia de batuques, tambores, pulsação, fé. A poesia dela é canto puro,
celebração, grito de guerra. Precisamos de sua poesia em nossas vidas — exalta
Freire.
[Fonte: www.oglobo.globo.com]
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