Entre ironia
e denúncia, André Sant’Anna faz surpreendente mergulho nas vilanias da classe
média
Por ANTONIO MARCOS
PEREIRA
À medida que um autor produz mais e acumula reputação,
como é o caso de André Sant’Anna, há mais de dez anos no meio e com vários livros
publicados, a recepção já se prepara ao saber de livro novo. Queremos que o
autor nos dê aquilo que conduziu à admiração, faça mais uma vez seu abracadabra
particular e encante. Mas esperamos também que surpreenda, produzindo algo que
— articulado no campo de sua assinatura — seja também novidade, invenção,
estranheza.
“O Brasil é bom” oferece precisamente isso. Aquilo que se
espera de Sant’Anna está aqui: sua sonda telepática investiga os fluxos de
consciência de criaturas abomináveis, como se ele fosse um Henry James dos
últimos dias, dedicado ao vulgar, ao ordinário, tão mais temeroso porque
próximo, familiar, conhecido. “Pode ver que aqui no Brasil não tem terrorismo,
não tem terremoto nem nada disso”, diz um. “Vá, mas vá com cuidado. A violência
está solta por aí”, diz outro. “Nós é que achamos que bom era no tempo da
ditadura”, diz um terceiro. Todo mundo já ouviu essas e muitas da mesma
estirpe, caçambas cheias de preconceitos de toda ordem, o pior do mais
lastimável expresso cheio de orgulho e com muita peremptoriedade. Nesse
sentido, o que parece ter lugar aqui é um esforço literalista, de mimetizar uma
ordem de pensamento trivial e barata.
Ao redor, pescada de conversas, ela é dispersão, estado
de coisas, espírito do tempo: vulgaridades do contemporâneo das quais
conseguimos nos separar com facilidade, como disparate. Organizada e compactada
nas narrativas, ela vira confrontação e convoca a pergunta: o que é “retrato do
Brasil” aqui? Esse país, o dessa ficção, é o Brasil “de verdade”? É esse o país
“bom”?
Ficasse por aí, o livro se resolveria fácil no
comentário: merca com a ambiguidade entre ironia e denúncia para fazer
representação de certa ideia de classe média que, desafiada por modificações
nos fluxos de consumo e pertencimento, se faz pregadora de valores torpes e
praticante tranquila e acomodada de uma vilania ordinária. Incapaz de qualquer
pensamento digno do nome, é uma máquina movida a dinheiro, consumo e lucro que,
em seus mil avatares, povoam várias narrativas. Morre o sujeito, fica a burrice
— e o dinheiro, onipresente, sedativo maior das possibilidades humanas.
Mas aparece uma “contradição paradoxal insolúvel”, para
usar a fala de um dos personagens, que é o giro novo do parafuso aqui. Pois o
que Sant’Anna realiza a partir disso, tendo organizado o retrato nesses termos,
é implodido nas narrativas finais, que desorganizam o esquema. Em vez de dar
mais do mesmo, corre noutra direção. Em “Lodaçal”, temos uma glosa do “Brejo da
Cruz”, a canção de Chico Buarque, focalizando a experiência de dois desses
meninos que se alimentam de luz e saem por aí, assumindo formas mil. “A
dificuldade da poesia” é um mosaico de imagens do presente, banalíssimas, mas
cuja articulação conjunta ao mesmo tempo adiciona, provoca e subtrai das
cafonices que passam aí como poesia contemporânea. E nas narrativas chamadas de
“histórias” — da revolução, do rock, do futebol, e da Alemanha — temos
investidas aparentes no autobiográfico e memorialístico.
São
textos que mexem com os diálogos que Sant’Anna quer forjar com seus
precursores, e inventam um jeito de falar de anos 60, desbunde, ditadura,
abertura, arte e política para contar não uma, mas um turbilhão de histórias,
investindo numa outra chave para a autoridade da primeira pessoa, pois “é
história demais e eu não sei se foi exatamente assim que aconteceu”. Isso
contradiz o que lemos antes, o exercício desses sujeitos burros e peremptórios,
o derrame abundante de estupidez de “Nós somos bons”, “Amando uns aos outros” e
“Amor à pátria”. Agora o negócio fica mais flutuante, e sua consistência vem de
outro lugar, de um núcleo mais generoso que convence ao investir não mais numa
suposta reprodução, mas na potência do delírio e da imaginação para falar quer
dos outros (personagens sociais, como os garotos pobres de “Lodaçal”), quanto
da suposta experiência de formação do narrador, quanto da poesia.
Para todo lado, implica-se o leitor num certo pandemônio:
é Whitman dizendo “contenho multidões”, e valendo esse dito não só para o
garoto de classe média e pais esquerdistas, mas também para os guris anônimos
que saem de um matagal remoto pras ruas da cidade grande. Ao final, relemos o
início, e nos damos conta de que os personagens escrotos talvez sejam tadinhos,
e a verve brutal seja só uma reação que resta à ternura para se viabilizar no
meio de perdidos que não sabem o que fazem, nessa “poesia do erro, da fraqueza
e da feiura”.
*Antonio Marcos Pereira é professor da Universidade
Federal da Bahia (UFBA)
[Fonte: www.globo.com]
Sem comentários:
Enviar um comentário