Por EMILIO FRAIA
RESUMO - O
escritor argentino Adolfo Bioy Casares, cujo centenário comemora-se amanhã
(15), viveu à sombra de seu amigo Jorge Luis Borges. Embora menos lido do que o
autor com quem dividiu projetos e autoria, estudiosos e fãs analisam o caráter
discreto e refinado de sua obra e destacam faceta menos conhecida de
memorialista.
Se "city tour" fosse
uma modalidade da crítica, o capítulo argentino poderia iniciar assim: "A
Calle Jorge Luis Borges é imensa, cheia de plátanos e atravessa Palermo. No
coração do bairro, que de subúrbio e 'orilla' passou a centro e lugar da moda,
está a Plaza Cortázar. Dela saem ruas repletas de bares, restaurantes, lojas de
roupa, cafés, livrarias, onde 'se puede vivenciar la movida joven nocturna y
diurna'. A Calle Adolfo Bioy Casares, por sua vez, é breve, quieta, uma leve
descida. Começa e termina num canto da Plaza San Martín de Tours, na Recoleta.
Atrás das árvores, fica quase invisível".
Nascido em 15 de setembro de
1914, Bioy Casares é uma espécie de fantasma entre seus pares. Suas aparições
são sutis; seu estilo é transparente, sem estridência, e sua obra parece estar
sempre à sombra. Durante toda a vida, o autor de "A Invenção de
Morel" (1940) foi vinculado a Borges, seu amigo e parceiro literário, com
quem escreveu livros, fez traduções e organizou antologias.
Ironicamente, a mística da
discrição o acompanhou até em seu centenário, obliterado por um outro,
apoteótico, o de Julio Cortázar. Na Feira do Livro de Buenos Aires, em maio
deste ano, a quantidade de homenagens e lançamentos em torno de Cortázar
impressionava. A Bioy restou a exibição de um vídeo triste com trechos de sua
obra dramatizados de forma triste, numa sala triste em que só podiam entrar
três pessoas, evidentemente tristes, por vez.
Diante de tais particularidades e contingências, os
caça-fantasmas literários têm tido trabalho dobrado para tirar o autor daquele
limbo para onde vão os escritores após a morte. "Ele está em suspenso,
esperando ser redescoberto e que lhe façam justiça", diz um entusiasta de
sua obra, o escritor argentino Rodrigo Fresán, por telefone, de sua casa em
Barcelona. "É preciso que surja uma nova geração que o aborde sem nenhum
tipo de preconceito, que consiga observá-lo com alguma distância", clama.
A oportunidade parece estar chegando. Se não propriamente
de "justiça" ou ampla "redescoberta" -porque Bioy dará um
jeito de desaparecer-, pelo menos de investigar seu legado e se sua obra ainda
tem o poder de assombrar.
HOLOGRAMA
Bioy Casares morreu em 8 de março de 1999, aos 84 anos.
Em novembro, ele se materializa entre nós com a publicação do primeiro volume
de sua "Obra Completa" (organizada pelo pesquisador Daniel Martino),
a sair pelo selo Biblioteca Azul, da editora Globo. Nesse tomo está toda sua
fase inicial, que vai de "A Invenção de Morel" (tradução de Sérgio
Molina) a "O Sonho dos Heróis" (1954, tradução de Josely Vianna
Baptista) e "História Prodigiosa" (1956, tradução de Antônio
Xerxenesky), passando pelos contos inesquecíveis de "A Trama Celeste"
(1948, tradução de Ari Roitman e Paulina Watch).
Na Argentina, o terceiro volume acaba de chegar às
livrarias. Nele figuram "Dormir ao Sol" (1973), "A Aventura de
um Fotógrafo em La Plata" (1985) e obras que surgiriam depois de o
escritor ter sido agraciado com o Prêmio Cervantes, em 1990 -além de "Uns
Dias no Brasil" (2011), que narra suas andanças por São Paulo, pelo Rio e
pela recém-nascida Brasília, nos anos 60. Em breve, seus livros ganharão também
novas edições de bolso, pela Emecé. E uma exposição, "El Lado de la Luz, Bioy
Fotógrafo", no Centro Cultural San Martín (a ser inaugurada no dia 28 de
setembro), pretende dar conta de suas incursões pela fotografia.
O que sabemos de Bioy, no entanto, não é tudo. Ao lado de
sua figura de exímio urdidor de tramas, que rechaçava as narrativas realistas e
psicológicas -"mera verossimilhança sem invenção", segundo Borges, no
célebre prólogo de "A Invenção de Morel"-, começa a se produzir agora
o holograma doutro Bioy.
É o pesquisador Ernesto Montequín quem dá forma ao tal
ectoplasma, entre um café e outro, no El Gato Negro da Avenida Corrientes,
Buenos Aires: "O que vem acontecendo com Bioy é algo surpreendente. Sua
obra visível, a que temos acesso, é apenas uma parte do todo. Secretamente, ao
longo dos anos, ele desenvolveu uma espécie de vida literária paralela".
Montequín se refere aos
diários do escritor. De 1949 a 1975, Bioy escreveu-os de forma obsessiva,
preenchendo cerca de 120 cadernos. Destes, uma parte foi publicada em 2006 sob
o título de "Borges" -um catatau de 1.650 páginas. Era um projeto de
Bioy: sacar de seu diário todas as entradas em que o amigo fosse citado. Em
1990, anunciou que reuniria essas anotações em um livro: nele, Borges
apareceria "rindo das coisas que ele mesmo respeitava, falando como um
amigo íntimo".
O volume provocou calorosos debates e foi, sem dúvida, um
dos principais acontecimentos literários da última década na Argentina -sobre
ele, o escritor Alan Pauls diz, por e-mail: "É um texto sensacional,
talvez o melhor de Bioy, todavia o menos Bioy de Bioy".
Em 2001, surgiu "Descanso
de Caminantes", que muitos tomam como parte de seus diários, mas que foi
escrito pós-1975, num esquema diferente, de notas. Para os próximos anos, mais
escritos privados de Bioy devem vir à tona.
A aposta de Montequín é de que
Bioy será redescoberto e reavaliado à luz dessa nova faceta, de memorialista.
"Isso vai mudar profundamente nossa percepção sobre ele", diz o
pesquisador, que administrou os direitos da obra do escritor durante seis anos
e hoje é responsável pelo arquivo de Silvina Ocampo -uma das mais brilhantes
contistas argentinas, autora de livros como "A Fúria" (1959), ainda
estranhamente inédita no Brasil-, com quem Bioy foi casado por 53 anos.
"Os diários de Bioy não
são meramente introspectivos. Bioy sabia que seriam publicados, por isso
injetou neles toda sua verve narrativa, apurada ao longo dos anos. Também não
têm a ver com o que conhecemos como autoficção. A tradição a que Bioy se filia
é outra", afirma Montequín. "Por conta de sua posição social, ele
tinha acesso a um mundo muito particular. Seus diários são a história de uma
classe, de um tempo, a história de meio século da vida argentina, além de,
claro, serem os registros de um dos maiores escritores do século 20."
Em 1949, Montequín destaca, um
fato iluminaria o caminho rumo aos diários: Bioy descobre Proust -e passa a se
interessar por livros de memórias, entrar em contato com as tradições inglesa e
francesa das autobiografias, ir atrás de compilações de cartas. "Ele
começa a ler de outra maneira, de um jeito diferente de seus anos iniciais,
quando estava mais próximo de Borges."
Isso se cristaliza em 1965,
quando, na segunda edição da "Antologia da Literatura Fantástica"
(1940), que compilou com Borges e Silvina Ocampo, Bioy agrega um pós-escrito ao
prólogo que fizera para o livro –prólogo este que, conforme registra o crítico
Emir Rodriguez Monegal em "Borges: uma Poética da Leitura"
[Perspectiva, R$ 27, 186 págs.], pertence à categoria de "texto
fundador". Nele, retifica algumas de suas opiniões. E principalmente:
absolve Proust, cuja obra havia comparado, na primeira versão do texto, a um
"maço de jornais velhos".
Outra mudança ocorre em
relação a Tchékhov. Em entrevista ao escritor argentino Fernando Sorrentino,
nos anos 1990, reunida em "Siete Conversaciones con Adolfo Bioy
Casares" [El Ateneo, R$ 42,90, 275 págs.], Bioy diz que "passou a
vida desdenhando de Tchékhov porque não havia argumentos em seus contos".
"Eu tinha predileção pelas narrativas que contavam histórias", diz. "Mas
opinava sem ler, ou tendo lido apenas de forma rápida." Nos anos 1950,
depois de voltar a Tchékhov, passa a se sentir próximo a ele, a seu jeito de
ser. "Hoje, muitas coisas da psicologia de Tchékhov me são agradáveis. É
como se tivesse descoberto um amigo."
ESPECULAÇÕES
Em 11 de novembro de 1955,
Alejandra Pizarnik anota sobre Bioy Casares em seu diário: "Escreve muito
bem. Mas tem alguma coisa que falha. Ainda não descobri o que é. Talvez não
encontre, mas é uma vaga sensação de falta de plenitude".
O sentimento da poeta argentina
encontra eco na apreciação de Alan Pauls sobre o estilo de Bioy: "Ele é
'puro' demais, e está feito sempre de uma coisa só, apenas um tom, um só
imaginário. Suponho que isso seja precisamente sua força, o que gostam nele,
mas eu prefiro a literatura impura"."Talvez por serem transparentes
demais, os textos de Bioy não se prestem muito a especulações críticas",
avalia Pauls. "Seu legado é a defesa do relato, da narrativa, da
naturalidade como estilo. São valores que a crítica não aprecia muito, basicamente
porque é pouco o que se pode fazer com eles."
A esse respeito, a jornalista
e editora argentina Violeta Weinschelbaum assente: a presença de Bioy na
escrita acadêmica hoje é praticamente nula. "Hernán Díaz, diretor da
'Revista Hispánica Moderna', da Universidade Columbia, comentava comigo que,
nos três últimos anos, apareceu um só artigo sobre sua literatura", fala.
"Dos autores jovens que conheço, ninguém se
interessa muito por ele", completa a editora, apontando que, enquanto
"quase ninguém o lê sistematicamente", é possível notar certo
"delírio", à moda da literatura de César Aira, "que parece
determinar grande parte da literatura contemporânea na Argentina e tem muito a
ver com Bioy".
Weinschelbaum chama a atenção
para outro ponto, referente à classe: muitos desses autores, diz, têm uma
postura clara de fastio frente à aristocracia de Bioy. "Em contrapartida,
o ativismo político de Cortázar faz com que siga mais vigente entre determinado
grupo de escritores (e de leitores) que manifestam certo progressismo político.
O interessante", fala, "é que Bioy e Cortázar se admiravam, não havia
brigas entre eles."
Filho de fazendeiros e casado
com Silvina Ocampo, a filha mais nova de uma das famílias mais ricas da
Argentina, Bioy Casares sempre levou sua classe com pudor e discrição, que é como levavam a classe os homens com classe de antes dos anos 1970. "Essa falta
de ostentação e essa naturalidade estão muito em sincronia com a poética de
Bioy, que descansa no 'understatement' e na transparência", comenta Pauls.
"A partir dos anos 1990, quando irrompem na Argentina os novos poderosos,
a alta burguesia a que pertencia Bioy passa a ser uma classe admirável (por
seus modos, sua cultura, sua ética), inclusive para a esquerda que sempre a
combateu."
"Creio que não trabalhou
um único dia de sua vida, viveu muito comodamente, com uma herança familiar, e
isso sempre despertou certo preconceito", analisa Rodrigo Fresán. "É
um autor por quem a academia nunca se interessou. Conheço escritores que o
consideram um burguês aristocrata que escrevia em seu tempo livre. O que não
dizem é que foi um burguês aristocrata que escrevia muito bem em seu tempo
livre."
César Aira, por sua vez,
revela nunca ter nutrido muita simpatia por Bioy, ainda que "tenha
terminado por perdoá-lo" quando leu seu "Borges". "É um
livro maravilhoso, que justifica uma vida de escritor", elogia, por
e-mail. "De sua obra, gosto de 'A Aventura de um Fotógrafo em La Plata', e
de alguns contos, como 'O Grande Serafim'. 'A Invenção de Morel' tem uma
explicação final longa demais, que torna o livro feio. Se um romance precisa de
tanta explicação é porque alguma coisa falhou. Pensando agora, o que mais gosto
de Bioy é seu último livro, 'De um Mundo a Outro', do qual todos dizem,
seguramente com razão, que é senil -e que se parece tanto ao que eu
escrevo."
Para o argentino Oliverio
Coelho, eleito um dos melhores jovens autores hispano-americanos pela revista
britânica Granta em 2011, "Bioy inaugurou um modo de escrever atípico para
a época na Argentina, uma modalidade sem estridência, um sistema narrativo onde
o jogo de matizes, a sátira e a ambiguidade psicológica aparecem unidos a certa
naturalidade na escrita, uma coisa única". Enquanto encara um wok de
macarrão com legumes no bar Shangai, em Palermo, Coelho lamenta a ausência de
Bioy no debate literário argentino. "Dá para pensar nos contos de Bioy
como uma indagação dos afetos unida ao recurso fantástico. Talvez nenhum
escritor tenha oferecido percepções do amor tão diversas e
contraditórias."
Na opinião de Alan Pauls,
contudo, o melhor de Bioy está nos livros que escreveu com Borges -"Seis
Problemas para Dom Isidro Parodi" (1942), "Duas Fantasias
Memoráveis" (1946), "Crônicas de Bustos Domecq" (1967) e
"Novos Contos de Bustos Domecq" (1977). "Amparados por um
pseudônimo", diz o autor de "O Passado", "Borges e Bioy
lançaram mão de elementos que não poderiam nunca figurar em suas obras
individuais". Entre eles, destaca "certa artificiosidade barroca, o
uso brutal da cultura popular, atrevimento e paixões rasteiras".
WATSON E SHERLOCK
A história é sabida: quando se
conheceram, em 1932, na casa de Victoria Ocampo, em San Isidro, Bioy tinha 17
anos, e Borges, pouco mais de 30. Lá, reuniam-se colaboradores e pessoas
ligadas à revista "Sur", editada por Ocampo -irmã mais velha da
futura mulher de Bioy.
"Na casa de Victoria
estávamos num mundo literário que não era o nosso", lembra Bioy, numa das
entrevistas que deu a Sorrentino. A conexão entre eles foi instantânea. Por
muito tempo, encontraram-se diariamente para discutir textos, criar histórias e
colocar em prática a maledicência literária -"Creio que Thomas Mann era um
idiota" (Borges); "Nada pode ser pior do que Quiroga" (Bioy). Em
seu "Um Ensaio Autobiográfico" (1970), Borges diz que um dos
principais acontecimentos de sua vida foi a amizade com Bioy. "Ao se opor
a meu gosto pelo barroco, ele fez-me sentir que a discrição e o comedimento são
mais convenientes. Eu diria que Bioy foi me levando aos poucos ao
classicismo", escreveu.
As comparações entre Borges e
Bioy são uma instituição da literatura. Para muitos, é como se Bioy fosse o
Watson de Sherlock Holmes ou o Sancho Pança de Quixote. "Mas quem não
gostaria de ser o Watson de Sherlock Holmes?", pergunta Rodrigo Fresán.
"Sem falar que Watson salva Holmes e Sancho salva Quixote."
"De um ponto de vista
muito pessoal, digo algo que costuma me trazer problemas: Bioy Casares é melhor
do que Borges", provoca. "Essa visão não é partilhada pela maioria
dos meus colegas argentinos, mas Bioy me parece um escritor mais completo. Borges
me faz pensar no HAL 9000, computador de '2001, Uma Odisseia no Espaço'. Tem
algo de máquina, não humana, não sensível. Para mim, Bioy tem tudo o que há em
Borges e, além disso, certa sensualidade, paixão, uma consideração com as
personagens femininas que em Borges simplesmente não existe. Quando Borges quer
tratar de amor, sinto vergonha alheia. Dá vontade de sair correndo, um pouco de
pena. Já Bioy não: é um grande sensualista."
A esse respeito, Bioy Casares,
numa das entrevistas que concedeu a Sorrentino, lembra de Borges como uma
figura "eminentemente épica", que nutria desprezo pelo intimismo.
"Nos livros, não gostava de expressar sentimentos, mas na vida era mais
sentimental", diz. "Ficava apaixonado, sofria, deixava ver que estava
completamente apaixonado. E tinha má pontaria para mulheres; elas muitas vezes
o maltratavam por causa dessa entrega excessiva."
Borges admirava Bioy por sua
sedutora elegância, pela maneira como, sutilmente, colocava em marcha suas
conquistas. Pelos braços de Bioy passou uma infinidade de mulheres, solteiras e
casadas -Elena Garro, mulher de Octavio Paz, foi uma das que durante anos
sucumbiram a seus encantos. O escritor jogando tênis e tomando chá no clube,
com amigas queridas; o escritor em seu carro na saída dos fundos do teatro, com
um cigarro nos lábios, esperando uma atriz ou corista do espetáculo: imagens
possíveis de Bioy.
SOBRINHA
O escritor espanhol Manuel Vincent conta, em artigo de
2007 publicado no jornal "El País", que, certa noite, em uma reunião
de amigos na casa de Bioy, o escritor Carlos Mastronardi teria exclamado:
"Genca está poderosíssima!". Tratava-se de Silvia Angélica, sobrinha
de Silvina. Graças a esse comentário, Bioy reparou na beleza extraordinária de
Genca, na época com quase trinta anos –e no dia seguinte a fez sua amante.
Bioy relata que, quando era
adolescente, sofria de amores. Depois, tudo mudou. "Quando tive apenas uma
mulher, fui muito infeliz. Com duas ou três, parece que adivinhavam e me
mimavam para não me perder. Talvez tenha sido um Don Juan para me
proteger", afirma. "Quando dizia a verdade e me entregava por
completo, era comum que imediatamente fosse dominado e castigado."
Em uma entrada de
"Descanso de Caminantes" intitulada "Mar del Plata", Bioy
recorda que "suas amigas" às vezes queriam tirá-lo de casa durante a
noite, mas ele se negava, "porque Silvina ficava ansiosa, e porque passar a
noite fora sempre lhe deu medo e tristeza, um certo sentimento de culpa".
Para o crítico Alberto
Giordano, no artigo "La Intimidad de un Hombre Simples: los Escritos
Autobiográficos de Adolfo Bioy Casares", a "vida amorosa de Bioy Casares
foi a de um temeroso Don Juan que teve que ser também um marido fiel".
"Em casa sentia-se seguro, mas asfixiado e ansioso para saber se
continuava sendo atraente para as mulheres de fora", escreve. "Quando
estava fora, uma vez consumadas suas aventuras de sedutor, sentia um impreciso
e arcaico temor diante do desconhecido que o levava de volta para casa."
Giordano imagina Bioy como um
fantasma triste, vagando de um lugar a outro, prisioneiro de suas inconstâncias
e infidelidades, traído por suas próprias armadilhas. "Mais ou menos como
o imaginou Elena Garro, em um melancólico personagem de 'Testimonios de
Mariana' (1999), um Don Juan tomado pelo sentimento de 'filho infeliz de suas
mulheres'."
A Silvina Ocampo, todavia,
nunca caiu bem o papel de vítima, de mulher traída. Na história dessa relação
de grande amor, tão bonita quanto controversa, Ocampo desafiava as ideias de
como uma mulher deveria ser em sua época. Também teve suas aventuras, e sob
certos aspectos, diz Giordano, "de maneira ainda mais radical do que Bioy,
porque menos previsíveis".
Em "Los Bioy" [Tusquets,
R$ 26,10, 186 págs.], livro de memórias que retrata os 50 anos em que trabalhou
para o casal Bioy-Ocampo, a criada Jovita Iglesias conta que "Marcelo
Pichon Rivière, muito amigo da senhora e do senhor, escreveu, depois da morte
de Bioy, que na verdade Silvina havia tido uma vida amorosa igualmente intensa
à de Adolfito, só que com mulheres".
Não se trata de um segredo. E
é conhecida a carta que, em janeiro de 1972, poucos meses antes de suicidar-se,
a poeta Alejandra Pizarnik envia a Ocampo. Nela, pede a Silvina que não a
esqueça, que a ama demais e que gostaria que "estivesse nua, ao seu lado
agora, lendo poemas em voz alta".
ANTÍPODA
É difícil prever o que o futuro reserva a Bioy ou como o
seu espectro se comportará num mundo que, sob muitos aspectos, apresenta-se
como seu antípoda. "A princípio, acho que Bioy não deixa herdeiros: os
rumos da atual ficção hispano-americana são distintos demais do que ele
concebeu e escreveu", avalia o crítico e professor Júlio Pimentel Pinto.
"Ao mesmo tempo, porém,
me vem à cabeça uma infinidade de heranças de Bioy. Por exemplo: seu trabalho
como editor e antologista, que determinou a difusão, na Argentina, de autores
hoje óbvios, mas pouco ou nada conhecidos à época, como Kafka e
Swedenborg." Pimentel frisa ainda "seu apreço, tão raro entre nós,
pelas histórias de aventuras e pelos enigmas policiais; um apreço pela
literatura de engenho, pelo rigor das arquiteturas narrativas, pela elegância
do texto, pelo domínio pleno da língua". "Ou, ainda, a originalidade
e a precisão das ambientações de seus romances, as categóricas descrições de
personagens: sutis, complexas, envolventes -como as tramas que inventava."
Para Rodrigo Fresán, uma
narrativa de Bioy que deve romper a dimensão espaço-tempo de nossos dias e
permanecer entre nós no futuro é "O Sonho dos Heróis" -a história de
um personagem que perde a lembrança de uma noite em que algo revelador
aconteceu e, anos depois, decide tentar recuperá-la. "Formalmente, é o
maior romance da literatura argentina, o romance mais perfeito", diz.
"'Adán Buenosayres',
'Sobre Heróis e Tumbas', 'O Jogo da Amarelinha', 'Facundo', 'Respiração
Artificial' são todos romances desarticulados, episódicos. São prisioneiros do
fantasma do conto, gênero rei da literatura argentina", afirma Fresán.
"'O Sonho dos Heróis' rende homenagem a essa estranheza, pois é um romance
que tenta o tempo todo recordar um conto, o que aconteceu numa única noite.
Trata-se de um conto e de um romance, ao mesmo tempo."
Ao fim, um possível legado de
Bioy Casares poderia estar na sua reticência, na sua sobriedade deliberada, na modéstia
estilística que atravessa suas narrativas -ou no ar de uma rua pequena,
escondida atrás de uma praça, na Recoleta. "A herança de Bioy, de tão
ampla e discreta, é destituída de qualquer testamento e talvez nem consigamos
ter consciência de sua profundidade", diz Pimentel. E completa (quase dá
para ouvir um suspiro): "Mas como seria bom se não o perdêssemos de
vista."
EMILIO FRAIA, 32, é autor do
romance "O Verão do Chibo" (Alfaguara), com Vanessa Barbara, e da
graphic novel "Campo em Branco" (Companhia das Letras), com DW
Ribatski.
MARTÍN KOVENSKY, 56, artista plástico
argentino, é autor de "Terminaron las Clases" (Papelera Palermo).
[Ilustração: MARTÍN
KOVENSKY - fonte: www.folha.com.br]
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