No livro, que será lançado no
Brasil ano que vem, artista franco-sírio faz um relato afetivo e crítico de sua
juventude
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Página da HQ “O árabe do futuro”, de Riad Satouff
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correspondente
em PARIS
Quando eclodiu a guerra
civil na Síria, em 2011, Riad Sattouf agiu prontamente para ajudar familiares
da cidade de Homs, um dos epicentros da revolta, a se refugiarem na França,
onde ele vive. O início dos conflitos e sua operação particular de salvamento foi
o elemento deflagrador para que mergulhasse no projeto de uma trilogia pessoal
de história em quadrinhos (HQ). “L’árabe du futur — Une jeunesse au
Moyen-Orient (1978-1984)” (“O árabe do futuro, uma juventude no Oriente
Médio”), primeiro volume lançado com sucesso de crítica e de público este ano
na França (Ed. Allary) — será publicado também em inglês, coreano, italiano,
alemão, espanhol, holandês e, no Brasil, sairá em 2015 pela Intrínseca —, é uma
narrativa autobiográfica sobre sua infância vivida na França, na Síria e na
Líbia.
Reconhecido quadrinista da nova geração, criador do
personagem Pascal Brutal, e com incursões também no cinema — prêmio César de
melhor primeiro filme em 2010 com “Les beaux gosses” —, Sattouf, de 36 anos, é
filho de mãe francesa, nascida na Bretanha, e de pai sírio, de uma aldeia
próxima a Homs. O casal se conheceu no começo dos anos 1970 em Paris, no
restaurante universitário da Universidade Sorbonne, onde o pai, Abdel-Razak, de
origem sunita, fazia uma tese sobre história contemporânea com uma bolsa
oferecida pelo governo francês.
Franco-sírio,
Satouff viveu a infância e a juventude entre dois mundos e culturas. “L’árabe
du futur” é um álbum construído fundamentalmente a partir de suas memórias,
numa mescla das impressões e sensações de uma criança nascida na França que
elegeria o socialista François Mitterrand, e de suas peregrinações pelas
ditaduras síria, de Hafez al-Assad, e líbia, de Muamar Kadafi. Com seu traço e
olhar de hoje avivados pelos suvenires de outrora, Satouff retrata uma miríade
de curiosos personagens, por meio de um relato íntimo repleto de anedotas em
meio a singulares contextos políticos, sociais e religiosos.
O título
surgiu a partir da obsessão de seu pai, arauto do pan-arabismo, com a educação
nos países do Oriente Médio como uma saída do obscurantismo religioso e
edificação do que chamava de “árabe do futuro”.
— Meu pai
era obcecado pela educação no mundo árabe. Queria retornar para lá para criar o
árabe do futuro, o árabe de amanhã, que não fosse supersticioso, escravo das
grandes potências e, ao mesmo tempo, tinha uma concepção de progresso aliada a
certas tradições. Ele queria que todo mundo aprendesse a ler, que estudasse. A
aldeia em que nasceu era extremamente pobre, não havia água corrente. Ele
cresceu na Idade Média, e ter viajado ao exterior foi um despertar de sua
consciência para muitas coisas — conta o autor, hoje preocupado com “o
ressurgimento do fascismo e do nacionalismo na Europa”.
Você quis construir um relato baseado exclusivamente em sua
memória?
Tenho
muitas lembranças da minha infância, que remontam longe no tempo. E parti
unicamente destas memórias, não perguntei coisas para a minha família. Quando
me refiro à época em que tinha dois ou três anos, me recordo da situação, do
clima, da emoção, mas não dos diálogos. Então recompus diálogos, numa forma um
pouco romanesca, para tornar legível. Mas parti, sim, só de coisas que tinha na
minha cabeça. Lembro muito bem, por exemplo, de meu pai lendo o “Livro verde”,
de Kadafi, e de minha mãe zombando dele. Basta abrir o livro em qualquer
página, é trágico e cômico. E recomponho a história partindo de acontecimentos
reais. Queria fazer algo fiel ao que tenho na cabeça. As lembranças de quando
se é criança não se referem apenas a ações, mas a sensações, odores, luzes,
sons. Queria fazer um relato completo disso, das coisas fortes que sentimos
quando se é criança.
Trata-se de uma história de infância em meio ao contexto da
época do mundo árabe. Como você fez esta abordagem?
Seria
impossível fazer um livro que fale do “mundo árabe”. É demasiado complicado,
muito complexo. Quando se fala do mundo árabe, sobretudo no Ocidente, se quer
simplificar rapidamente e explicar tudo facilmente. O destaque que coloco no
meu livro é que só falo do que conheci, ou seja, a vida numa aldeia perto de
Homs. Deixo o leitor construir sua ideia. Não posso querer que isto represente
a vida em sua totalidade. Em Alepo, a pouco mais de uma centena de quilômetros
de onde eu morava, as pessoas viviam de maneira diferente. Mas penso que a obra
fornece uma luz e um outro ângulo sobre situações que não víamos desta forma.
Pelo íntimo e a experiência cotidiana de uma família numa aldeia pobre, de
camponeses, quis dar uma clareza sobre a sociedade. São sempre as classes mais
desfavorecidas que permitem distinguir a sociedade em seu conjunto.
O relato passa por Homs, na Síria, e pela Bretanha, na França,
dois mundos diversos.
Eu queria
contar os dois, tal como era. Minha mãe era originária da Bretanha e meu pai,
da Síria. É uma combinação atípica. Eu experimentei os dois, e foi engraçado
escrever como se vivia de cada lado, os pontos comuns que se pode ter, as
diferenças. Conto a história desta mulher que vivia na Bretanha como no tempo
da Idade Média, e que morreu quando eu era pequeno. Ainda é muito recente o
progresso na França, há lugares muito pobres. A riqueza do país avança, mas há
50 anos, em certos aspectos, não estava tão distante da Síria.
Na sua experiência, as crianças sírias aparecem de uma certa
forma como mais maduras do que as francesas.
As crianças
da aldeia, meus primos, eram livres na Síria, largados na rua para fazer o que
quisessem. Elas se tornavam maduras mais rapidamente. Eram também mais
violentas, agressivas, e obcecadas pela briga, adoravam a guerra. Na França, as
crianças eram mais mimadas, protegidas. Vivia uma parte do ano com essas
crianças que já eram pequenos homens e, outra parte, com crianças francesas que
tinham medo de tudo, eram incoerentes. Foi engraçado observar e contar isto.
Você mostra o intenso ódio a Israel estimulado nas crianças
sírias.
Era algo
que queria muito contar. Foi algo muito importante da minha infância. Era
metade francês e metade sírio, e quando chegávamos à aldeia de meu pai, sua
família aceitava o fato de que ele fosse casado com uma estrangeira, mas as
crianças eram muito cedo educadas a odiar Israel, “O” país inimigo da Síria.
Elas sabiam quem eram os países amigos dos americanos e dos russos. Quem
apoiava os americanos era pró-israelense, e os países do bloco do Leste europeu
eram amigos da Síria, aliada da União Soviética. Todo o equipamento militar
sírio era russo. Este era o lado dos “bons”, dos muçulmanos. Era algo muito
incrustado e cultivado na educação das crianças, e desde muito cedo. No segundo
volume, conto como se passava na escola.
Você diz não ter consciência, na época, de que havia uma
ditadura na Síria. Hafez al-Assad era um chefe rígido e sóbrio, ao contrário de
Kadafi, na Líbia, mais no estilo playboy, com um lado bastante heroico ao olhar
de uma criança.
Foi
realmente uma impressão de criança. Mas é verdade que as condições nas quais
vivíamos na Líbia eram melhores do que as que tínhamos na Síria. Mas falo das
nossas condições, porque para a população em geral era terrível. Guardei esta
lembrança de Kadafi como a de alguém mais dinâmico. Assad tinha um lado mais
dissimulado. Kadafi era um louco. Mas são impressões de infância.
Como você vê a Primavera Árabe?
Tenho
tendência a ser bastante otimista, mesmo se as coisas parecem por vezes muito
negativas e sombrias. Penso que a partir do momento em que há uma vontade de
mudança, é algo sempre positivo. Mas leva tempo. Quando vemos a Revolução
Francesa, ela foi seguida de longos anos de caos, problemas, violência. Mas o
fato de que haja um movimento no mundo árabe é muito positivo mesmo que, do meu
ponto de vista, pense que vai levar 500 anos. Não verei estas mudanças em vida (risos).
E sobre a guerra civil na Síria, que já perdura desde 2011?
Acho que
isto não está próximo de acabar. O fato de o país ter sido completamente
abandonado é verdade que me chocou. Penso que um dia o mundo ocidental vai
pagar muito caro por isto. Ignoraram pessoas que não esquecerão que foram
abandonadas. Mas são escolhas históricas.
Qual seu sentimento em relação ao conflito Israel-Gaza?
É algo
muito complicado. Eu moro em Paris próximo da Praça da República, onde
ocorreram manifestações de pessoas que se reivindicavam pró-Palestina, com
muitos confrontos. Havia numerosos slogans antissemitas, suásticas foram
desenhadas na estátua da República, e muitas pessoas faziam a “quenelle”,
saudação nazista criada por franceses. Considero isto escandaloso e
aterrorizante. Penso que com a crise há um retorno do fascismo, que adota
contornos completamente novos. Tudo o que sei sobre o conflito entre Israel e a
Palestina é o que vejo graças à mídia, não vivo lá. Mas fico horrorizado tanto
pelas imagens de destruição que se podem ver na Palestina como pelas terríveis
imagens da Revolução Síria, ou também com Boko Haram (grupo
militante islâmico nigeriano). Apenas me surpreendo muitas vezes
com as paixões deflagradas pelo conflito israelense-palestino. Não é que não me
sinta atingido, mas não quero fundar minhas opiniões na paixão das considerações
midiáticas.
Você se preocupa com o aumento do antissemitismo, da
islamofobia, da xenofobia?
Tudo o que
sei é que quando fui ver a manifestação pró-Palestina na Praça da República,
havia pessoas que desenharam a suástica e gritavam expressões antissemitas, vi
com meus próprios olhos. Se contasse esta história numa HQ, seria disto que
falaria, para questionar o leitor sobre o significado de tudo isto para a
sociedade. Penso que, além disso, há um verdadeiro risco fascista na Europa,
que se dissimula: passa pelo ódio à mídia, pela recusa em se acreditar que a
imprensa é independente, pelo ódio à política e à democracia, ao direito das
mulheres... Dizer que a classe política deve ser varrida é a retórica do
fascismo. Mas em relação a mim, minha profissão é apenas contar o que vejo na
rua.
Você já disse ter perdido a esperança de integrar seus lados
francês e sírio num conjunto homogêneo. Na Síria, você era um francês, e na
França, um “árabe de nome estranho”.
É verdade que esta posição de se sentir um pouco à parte
estimula a observação. E é o que faço no meu trabalho. Forçosamente, quando
somos colocados à parte, observamos como vivem aqueles que dizem “Nós
pertencemos a este sistema, você não faz parte”. É verdade que a xenofobia, o
racismo, a exclusão são coisas comuns a todas as culturas humanas. Damos mais
atenção, muitas vezes com razão, ao racismo nos países mais ricos. Na África,
as etnias se odeiam de uma aldeia a outra; na Síria, o Norte detestava o Sul;
os argelinos detestam os marroquinos, não tem fim. O racismo e a xenofobia são
os sentimentos mais partilhados pelo ser humano. E o fato de se sentir
orgulhoso do local em que se nasceu me parece uma ideia absurda. Mas é minha
história pessoal que leva a isso.
Você faz cinema e HQ, mas vê nos quadrinhos um aspecto artesanal
fascinante...
O que mais
faço desde que estou na França é HQ. O cinema apareceu depois graças à HQ, mas
não era um objetivo. Quero continuar a fazer HQs, o cinema é algo mais
complicado, há mais pessoas envolvidas. Para os meus álbuns, estou sozinho com
uma folha e um lápis e conto o que eu quero.
[Fonte: www.oglobo.globo.com]
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