Atritos em torno da biografia do poeta
obcecado pela morte
Por JULIANA GRAGNANI
RESUMO - Biografia do poeta e dramaturgo
Federico García Lorca, assassinado em 1936 na Guerra Civil Espanhola, ganha
nova edição no Brasil. Em entrevistas, biógrafo e família divergem quanto à
validade de abordar a homossexualidade do escritor e de procurar pelos seus
restos mortais, cujo paradeiro permanece desconhecido.
"Federico morreu perto de seu
povoado durante a guerra na Espanha." A frase, publicada em um livro didático
espanhol em 2011, introduziu crianças de seis anos à história do poeta e
dramaturgo Federico García Lorca, um dos mais célebres do país. Seu
assassinato, em 1936, foi omitido do texto direcionado a estudantes.
Em maio deste ano, depois que o caso
veio à tona, a editora espanhola responsável pela publicação retirou os livros
do mercado e prometeu corrigir as edições seguintes.
A versão sem censuras: Lorca morreu
fuzilado aos 38 anos pelas forças antirrepublicanas da Espanha, um mês após o
início da Guerra Civil no país. Seus restos não foram encontrados até hoje.
Um dos responsáveis por esclarecer as
circunstâncias da morte do poeta foi o escritor hispanista Ian Gibson, 75,
autor de "Federico García Lorca: A Biografia" [trad. Augusto Klein,
Biblioteca Azul, R$ 69,90, 718 págs.], volume lançado em 1989 no Brasil e que
agora ganha segunda edição, com novo prefácio escrito pelo autor.
Em 1965, quando o país ainda estava sob
o regime do general Francisco Franco (ditador entre 1936 e 1975), o irlandês
começou a investigar o assassinato de Lorca em Granada, no sul da Espanha.
"O acesso à informação era difícil.
Tive que me tornar um bom mentiroso. Até mandei fazer falsos cartões de
visita", diz Gibson, em entrevista por e-mail. O autor se tornou cidadão
espanhol em 1984 e hoje vive em Madri. Para obter informações sobre a morte de
Lorca, ele fingiu investigar a participação da Irlanda na Guerra Civil
Espanhola. O resultado foi o livro "A Morte de Lorca" (Civilização
Brasileira, esgotado), publicado em 1971 em Paris e banido da Espanha à época.
Para escrever esse e outros livros sobre o poeta, como o agora reeditado,
Gibson diz que entrevistou mais de mil pessoas.
PIANISTA - Lorca nasceu em 5 de junho de
1898, no lugarejo de Fuente Vaqueros, aos pés da Serra Nevada, próximo a
Granada. Em 1909 mudou-se para a cidade. Era mau aluno, mas um talentoso
pianista, que mais tarde viria a destacar-se no meio literário.
O autor das peças "Bodas de
Sangue" (1933) e "A Casa de Bernarda Alba" (1933-36) era
homossexual. Por causa dos trejeitos afeminados, no colégio chegou a ser
chamado de "Federica".
Sua orientação sexual era um problema
para a família --e acabou sendo um entrave para a realização da biografia. O
autor afirma que os parentes de Lorca lhe deram acesso "relativo, nunca
total" aos arquivos do espanhol.
"Seu irmão Francisco e sua irmã
Isabel se recusavam a falar sobre o assunto, quando para mim parecia
fundamental levá-lo em consideração. Quando perceberam, começaram a se afastar.
À medida que eu investigava mais a fundo, o relacionamento ia ficando mais
difícil. Por fim, rompeu-se", afirma.
Presidente da Fundação García Lorca,
Laura García Lorca, sobrinha do poeta, relativiza a posição de seu pai,
Francisco, e de sua tia, Isabel. "Eram outros tempos, não se falava de sexualidade
e menos ainda de homossexualidade", disse, em entrevista por telefone, de
Madri.
Segundo ela, o biógrafo teve
"acesso total" aos documentos de Lorca. "Talvez não tivesse tido
antes porque não existia a fundação, e não porque alguém tenha ocultado algo
dele", diz. A instituição foi criada em 1984, um ano antes da publicação
do primeiro volume da biografia na Espanha.
Se a legislação espanhola fosse como a
brasileira, é possível que a biografia de Lorca não tivesse sido publicada no
país europeu. Aqui, de acordo com os artigos 20 e 21 do Código Civil,
biografados e herdeiros podem vetar uma biografia que não tenha sido autorizada
ou aprovada por eles. A regra tomou o debate público no ano passado, quando
artistas como Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso disseram ser
favoráveis à manutenção da norma vigente no país.
Tido como um dos principais biógrafos de
personalidades espanholas --além de Lorca, escreveu sobre a vida do pintor
Salvador Dalí (1904-89) e do cineasta Luis Buñuel (1900-83), entre outros--,
Gibson diz que não há maneira definitiva para resolver a questão da
privacidade. Mas a mais absurda, para ele, é a supervisão da obra pelo
biografado ou sua família.
"A ideia de supervisão' é tão
horripilante quanto a ideia de a família autorizar alguém a escrever uma versão
oficial, deixando de fora áreas sensíveis ou polêmicas", afirma o
biógrafo. Nesse caso, diz, "uma biografia honesta não é possível".
Embora reconheça ser impossível
mantê-los integralmente, a sobrinha de Lorca defende "espaços
privados" para os biografados. "Há questões que as pessoas quiseram
que fossem privadas e eu prefiro respeitá-las."
CÃO ANDALUZ - Lorca foi ator, diretor, pianista,
guitarrista, ensaísta, pintor, dramaturgo e poeta. Atraente --moreno, de
sobrancelhas grossas e olhos grandes--, ele é descrito por amigos ora como
radiante, ora como melancólico.
Foi na Residencia de Estudiantes, em
Madri, ponto de encontro de artistas da época, que Lorca tornou-se amigo de
Dalí e de Buñuel.
Mais do que isso: o poeta foi apaixonado
por Dalí. Buñuel tinha ciúme da relação entre os dois. "Lorca era louco
por Dalí, mas Dalí morria de medo de ser gay, e resistiu até o fim. Buñuel era
homofóbico a ponto de também levantar dúvidas", afirma Gibson.
Em 1928, Buñuel e Dalí produziram o
filme surrealista "Um Cão Andaluz". Os colegas da Residencia
referiam-se às pessoas do sul da Espanha como "cães andaluzes"
(perros andaluces), em referência à sua região de origem. Mas, como o amigo
Ángel del Río depois relataria, Lorca viu no filme um ataque direto a ele.
"Buñuel fez uma merdinha de filme chamado Um Cão Andaluz' --e o cão sou
eu", disse Lorca, conforme relato de Del Río.
No mesmo ano, Lorca lançou o livro de
poemas "Romanceiro Cigano", em que misturou linguagens erudita e
popular para retratar a Andaluzia. Em Nova York, no ano seguinte, o autor
escreveu "Poeta em Nova York", no qual flertou com o surrealismo.
ENCANTO - Última capital árabe da Península
Ibérica, reconquistada pelos espanhóis em 1492, hoje uma cidade turística e
universitária, Granada é conhecida pelo encanto que exerce sobre os visitantes
--a maioria quer conhecer a Alhambra, fascinante palácio árabe erguido no alto
de uma montanha. Para Lorca, Granada foi sobretudo uma fonte de inspiração.
É para lá que a sobrinha do poeta,
Laura, quer transferir os arquivos do tio que hoje ficam na fundação, em Madri.
Em 2007, a União Europeia, o governo da Andaluzia e a prefeitura de Granada
criaram um consórcio para construir na cidade o Centro Federico García Lorca,
ao custo estimado de 23 milhões de euros. As obras, cuja conclusão era prevista
para 2010, não foram terminadas até hoje.
Laura diz à Folha que o
local será inaugurado em setembro do ano que vem. Hoje, é possível visitar em
Granada a Huerta de San Vicente, casa de veraneio dos Lorca transformada em um
pequeno museu.
Foi nessa casa que Lorca escreveu grande
parte de suas obras. Passou o verão de 1931 ali, escrevendo "como uma
fonte", produzindo de manhã, de tarde e de noite um livro de versos, segundo
carta que escreveu a um amigo.
A hipótese mais provável é que a obra em
questão fosse "O Divã do Tamarit" [trad. Josely Baptista Vianna,
Biblioteca Azul, R$ 39,90, 80 págs.], dedicada pelo autor aos antigos poetas
árabes de Granada. O título, que ganha nova edição no Brasil (bilíngue e com
ilustrações do escritor, como a desta página), é o último de poemas de Lorca,
escrito entre 1931 e 1935.
"Somente um granadino poderia
sentir com tão aguda hiperestesia essa tendência a debruçar-se sobre a ruína,
esse negligente e sensual abandono que --diante de uma Sevilha exata e uma
Córdova elegante-- caracteriza Granada", escreveu o arabista Emilio García
Gómez (1905-95) na introdução ao "Divã do Tamarit". Versos de Lorca
comparam Granada à lua --provável referência às casas brancas do bairro árabe--
e destacam os sons de água corrente de uma cidade repleta de fontes e açudes.
"Ele se identificava com a Granada
perdida para sempre em 1492 e dizia que ser de Granada o fazia simpatizar com
todas as pessoas sofridas", afirma Gibson. Nos poemas do "Divã"
também há referências à morte, uma constante em toda a obra de Lorca. Dizem os
primeiros versos de "Do Menino Morto": "Todas as tardes em
Granada/ todas as tardes morre um menino./ Todas as tardes senta-se a água/ para
falar com seus amigos".
"Granada era o cenário de sua
infância, mas também era cenário do sofrimento", lembra a sobrinha Laura.
Na última entrevista que concedeu, ao jornal "El Sol" em julho de
1936, Lorca afirmou que na cidade vivia a "pior burguesia de toda a
Espanha". Gibson diz que políticos de direita na cidade odiavam Lorca, o
que contribuiria para seu assassinato no mês seguinte.
ROSÁRIO DE MORTES - Certa vez, vestido de toureiro em
um Carnaval em Granada, Lorca fez amigos carregarem seu corpo pelas ruas, como
se ele tivesse recebido uma chifrada mortal. Em outra ocasião, caiu na risada
ao descrever a Dalí, em detalhe, a cena do fechamento do caixão com seu corpo e
o cortejo fúnebre que tomaria as ruas esburacadas da cidade.
Amigos de Lorca diziam que ele era
obcecado pela morte e gostava de dramatizar seu próprio fim.
O poeta americano Philip Cummings
registrou em seu diário uma viagem de trem que fez com o autor em 1929, na qual
Lorca comentou que o homem passava a existência "num jogo de esconde-esconde
com a morte". "Perguntei-lhe qual era para ele o sentido da vida. A
resposta foi simples: Philip, a vida é riso entre um rosário de mortes; é olhar
além do homem que gargalha e ver o amor no coração das pessoas", escreveu
Cummings.
A morte encontraria Lorca em 1936,
quando um golpe militar contra a República Espanhola desencadeou uma guerra
civil no país. Na tarde de 20 de julho, a guarnição de Granada sublevou-se
contra os republicanos. Manuel Fernández-Montesinos, prefeito de Granada e
cunhado de Lorca, foi preso em seu gabinete.
Alvo fácil por ser poeta, homossexual e
simpático à República, Lorca decidiu esconder-se na casa de um amigo, o poeta
Luis Rosales. Menos de um mês depois, em 16 de agosto, Lorca foi encontrado
pelos fascistas. Naquele mesmo dia, seu cunhado fora executado. Quem entrou na
casa de Rosales para prender Lorca foi o ex-deputado Ramón Ruiz Alonso,
pertencente a uma coligação direitista. Sua alegação? Lorca "havia feito
mais estragos com sua pena do que outros com suas armas". Dias depois de
ficar preso na sede do governo, Lorca foi executado entre os vilarejos de
Víznar e Alfacar, nas cercanias de Granada, onde vários outros
"vermelhos" foram fuzilados.
EXUMAÇÃO - Talvez a principal divergência
entre o biógrafo de Lorca e a família do poeta seja o apoio de Gibson à
exumação do corpo de seu biografado. Em 2009, o irlandês apontou o lugar onde
acreditava estarem os restos do poeta, de acordo com o que apurou com uma
testemunha. Mas as escavações não resultaram em nada. Hoje, o autor cita promessa
do governo de esquerda à frente da região da Andaluzia de procurar as vítimas
da repressão franquista. E diz manter esperanças de que os restos sejam
encontrados.
Se depender dos herdeiros de Lorca, não.
"Entendemos o desejo de buscar os restos de familiares, mas acreditamos
que não é o caso de Lorca. Ele está onde deveria: entre tantos mortos
desconhecidos", diz Laura. "Ele não está acima de ninguém, é mais uma
das vítimas. Separar seus restos não nos dá nenhum consolo." Em 1940, quatro
anos após o assassinato do poeta, sua morte foi registrada em Granada. O
documento declarava que Lorca havia morrido "em consequências de
ferimentos de guerra".
"Para o mundo, dava a impressão de
que o poeta tinha sido vítima de uma bala perdida", escreveu Gibson. De
certa forma --em livros didáticos ou no esquecimento-- essa percepção ameaça
permanecer até hoje.
[Fonte: www.folha.com.br]
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