FRITZ LANG
SOBRE O TEXTO sobre
o texto Esta é uma seleção de verbetes de um dicionário pessoal criado pelo
cineasta alemão (1890-1976). A íntegra foi publicada em francês em 1964 e
estará no catálogo da retrospectiva completa de Fritz Lang, no CCBB-SP de 11/7
a 24/8, que será exibida também nas sedes da instituição em Brasília e no Rio.
ARTE Uma coisa é certa. A arte deve ser crítica;
essa é sua força e sua razão. Essa crítica deve ser uma crítica social, mas não
unicamente. Neste mundo há muitas coisas que devem ser criticadas. Não se podem propor soluções, mas deve-se sempre lutar para se designar o mal. Assim, meus
filmes policiais americanos são, antes de tudo, uma crítica à corrupção
policial e, portanto, contra toda corrupção. Acontece de um criador descobrir
em si mesmo coisas de que não gosta, e então ele deve criticar essas coisas.
CÂMERA Todos sabem que os filmes serão mais
divertidos para o público se ele tiver o sentimento de participar daquilo que
se passa na tela. Pode-se obter esse resultado usando a câmera de maneira
apropriada. O espectador do teatro está sempre na posição de um homem que
observa por uma fresta. Ele só pode olhar para a frente e, se os atores se
viram, ele fica restrito a vê-los de costas, ignorando o que podem estar
tramando. O teatro, como campo de expressão do ator, foi expandido e substituído
pelo cinema. A câmera pode apresentar um grande número de ângulos diferentes. A
câmera pode mostrar a ação exatamente como o autor a imaginava e a visualizava
enquanto escrevia sua história. Como o leitor visualiza a história que lê, a
câmera, que é um olho universal, possui um poder pelo qual o público é
transportado para além da fileira e acaba participando da ação.
CARTAS NA MESA Descobri hoje algo que é bastante interessante
para mim, e que acredito ser verdadeiro: em todos os meus filmes, eu coloco as cartas
na mesa. Creio que isso é muito mais interessante do que os filmes policiais
ingleses em que não se sabe quem é o assassino, ou o culpado. Acredito que é
bem mais interessante mostrar, como em uma partida de xadrez, o que cada um
faz.
Horst von Harbou/Cinemateca Alemã/Reprodução
Fritz Lang comanda as filmagens de
"Metrópolis", em 1926
CULTURA Acredita-se,
em geral, que seja possível colocar a cultura americana no mesmo plano que a da
Europa. Esse é um grande erro. Do outro lado do Atlântico, a cultura é mais
técnica, mais vasta, talvez mais interessante. No que me diz respeito, tendo me
banhado das duas culturas; eu gostaria de conseguir realizar uma mescla feliz
das duas concepções.
DIZER Não faço filmes para a geração de Fritz Lang.
Eu comecei minha carreira em 1918 e creio que seja necessário repetir as
pequenas coisas que tenho a dizer para todas as gerações. É preciso somente
repeti-las em outros termos, enriquecidas de sua própria experiência. São em
geral coisas bastante simples, como "o dinheiro não é a coisa mais
importante do mundo", "o amor é uma grande descoberta",
"encontrar-se a si mesmo é o mais alto valor". São ideias elementares
que nada têm de pessimistas. Se meus filmes parecem pessimistas, é porque o
quadro e a condição que assolam esses valores são desastrosos.
EROTISMO O erotismo da vida cotidiana americana, como
se sabe, faz sempre os europeus sorrirem com um pouco de compaixão. O
"happy end" dos filmes de sucesso, quando os dois amantes se beijam e
a câmera recua, significa a solução de todos os problemas evocados no decorrer
do filme. Eles se conhecem, se casam, agora tudo está aparentemente em ordem,
tudo está resolvido. Naturalmente, isso não é verdade, e atribuir à instituição
do casamento tal poder só é possível para um povo que se preocupa com esse
problema mais do que com qualquer outro e que não quer admitir o seu fracasso.
De acordo com estatísticas, um terço das mulheres casadas admite ter relações
com outros homens; três quartos das mulheres não amam seus maridos e não se
separam unicamente por causa das crianças ou por conforto. É nisso que reside o
problema sexual de nossa produção cinematográfica, pois é para esse público que
devemos fazer filmes e dar-lhe, no cinema, aquilo que não tem em casa. Daí o
interesse infatigável pelas histórias de amor e a autossugestão pela
contemplação do casamento como solução definitiva.
INDIVIDUALIDADE Os grandes temas de uma história são
internacionais, mas a maneira como se trata os temas depende do estilo do país.
Eu acredito que o tema central de minha obra é a luta que um indivíduo trava
contra aquilo que os gregos e os romanos chamavam de destino e que, no caso,
assume a forma de uma potência real: ditadura, lei ou sindicato do crime.
Trata-se da vontade de proteger a individualidade, e é importante lutar para
conseguir isso.
LADRÕES DE BICICLETA Um filme como "Ladrões de Bicicleta"
(1948), que em geral foi aceito nos Estados Unidos como um sucesso italiano,
seria impossível num meio americano. O problema de um homem cuja sobrevivência
depende de sua bicicleta não interessa à grande massa dos Estados Unidos, pois
o problema de transporte ali já se encontra resolvido. O americano se interessa
apenas por problemas que ainda não se encontram resolvidos para ele -por mais
que nem sempre queira admitir que não tenham sido.
MAÇÃ Se eu precisasse explicar por que reservo
normalmente um grande espaço vazio em torno de um centro de interesse, diria
que é o efeito mais simples e que não quero distrair o público daquilo que é
importante. Num filme em cores, eu não colocaria uma maçã vermelha atrás de uma
delicada moça, porque os olhos do espectador seriam demasiadamente solicitados
pela mancha vermelha.
MAR Eu jamais tive coragem de colocar em um de
meus filmes um único plano de mar1. O mar me assusta. Eu gostaria de ter dado
antes de Victor Hugo a seguinte definição: "O mar é uma coisa que me dá
medo". E, no entanto, nada me encanta mais do que o mar. Mas como não
creio que alguém seja capaz de traduzir o elemento poético do mar -que seja em
poema, em quadro ou em filme-, nunca ousei eu mesmo fazê-lo.
MORTE No que diz respeito à morte, eu diria que, em
certas circunstâncias particularmente desfavoráveis que acometem uma vida, ela
chega a ser desejável, mas que, ainda assim, se deve lutar por aquilo que se
entende como justo, mesmo que ao fim haja a morte.
PSICANALISTA Eu tinha o hábito de não levar a sério as
pessoas que vinham me explicar o que eu tentava fazer em meus filmes, mas
depois aprendi que, ao escrever uma história, deve-se conseguir explicar aos
atores por que seus personagens agem de determinada maneira. Talvez o crítico
seja uma espécie de psicanalista e descubra certas coisas reais das quais não
sou consciente.
PUTAS Em todos nós existe o mal, e um cineasta deve
mostrá-lo, deve exprimir o mal. O que nos diverte mais? Passar a noite toda
falando de uma puta ou de uma mulher tranquila que só se deita com seu marido?
Da puta, é claro. Elas são mais interessantes. O que podemos dizer de uma
mulher tranquila? É uma mulher tranquila, nada mais. Tenho o hábito de dizer o
seguinte: existem apenas duas categorias de indivíduos: os que são maus e os
que são muito maus. Mas nós chegamos a um acordo e chamamos os maus de bons e
os muito maus de maus.
RECEITA Amo o cinema, tenho vontade de realizar
filmes, mas não me pergunte por que nem como os faço. Os jovens, os estudantes
que vêm me ver, querem sempre obter receitas e explicações para a
"mise-en-scène". Sinto vontade de citar-lhes estas palavras de
Fausto: "Aquilo que você não capta você jamais compreenderá".
REMAKE É absurdo realizar um remake de "M., o
Vampiro de Düsseldorf" (1931). O assunto e o contexto do original estavam
ligados a uma atmosfera local muito bem definida, que não pode ser transposta,
e esse tema, que com o passar dos anos infelizmente se tornou bastante
conhecido, era então novo e original. Remakes como "Quo Vadis" (1951)
e "Os Miseráveis"2 são outra coisa, pois tratam de problemas que não
encontraram solução definitiva e que, portanto, interessam-nos hoje como nos
interessavam outrora, quando foram concebidos pela primeira vez. Esse tipo de
remake me parece justificado. Mas repetir um filme unicamente por causa de seu
sucesso financeiro já me parece uma má solução. De qualquer forma, não há
garantia de sucesso financeiro.
WESTERNS Há certas coisas que, quando ouço as pessoas
comentando sobre elas, sou incapaz de entender -quando falam de amor, por
exemplo. E a moral, o que isso quer dizer, diga-me, por favor? A moral dos
westerns: ela é muito simples. O western concebe da maneira mais simples os
atores, os cenários, a luz, e tudo isso recai sobre seus filmes seguintes.
Quando você fica mais velho, sua forma de viver também se torna muito mais
simples e talvez você veja as coisas de um jeito um pouco mais claro. A
simplicidade continuou em toda a minha obra americana.
NOTAS:
1. O mar aparecerá na obra de Lang em filmes posteriores ao texto: "Só a
Mulher Peca" (1952) e "O Tesouro de Barba Rubra" (1955).
2. O texto não especifica a
qual das adaptações de "Os Miseráveis" Lang se refere, provavelmente
ao filme de 1935, dirigido por Richard Boleslawski, ou à versão francesa de
1958, com Jean Gabin e dirigida por Jean-Paul Le Chanois.
Nota da Redação: esta é uma versão adaptada da tradução de
Bruno Andrade que constará do catálogo da mostra "Fritz Lang - O Horror
Está no Horizonte" (mais informações em
culturabancodobrasil.com.br/portal).
FRITZ LANG (1890-1976)
cineasta alemão, dirigiu, entre outros, "Metrópolis" (1927) e "O
Testamento do Dr. Mabuse" (1933).
[Fonte: www.folha.com.br]
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