quinta-feira, 5 de junho de 2014

O futebol na ponta da língua

Linguagem cotidiana amplia termos e expressões do esporte para além das quatro linhas




Por Luciana Hidalgo
A paixão pelo futebol no Brasil vem esgarçando os limites da língua portuguesa há coisa de um século. A espontaneidade brasileira desencadeou um vocabulário futebolístico rico e bem-humorado, usado até pelos que odeiam o esporte – a vingança dos fanáticos contra as exceções!

A rua torna-se um dicionário desse léxico matreiro, inventado por jogadores, torcedores, locutores e comentaristas esportivos, pouco a pouco absorvido pela língua geral. Assim, é possível ouvir frases do tipo: “pisou na bola”, “joga nas onze” sem que o vínculo com o futebol sequer seja lembrado.

O próprio verbo “driblar” é exemplo: embora signifique o movimento específico do jogador com a bola, seu uso fora de campo enfatiza a subversão de situações.

– O brasileiro é um povo que expressa sua emoção de uma maneira muito espontânea, fato que se reflete na linguagem – explica a pesquisadora Simone Nejaim Ribeiro.

Autora da dissertação de mestrado A Linguagem do Futebol: estilo e produtividade lexical (UERJ), Simone concorda que o vocabulário do futebol é uma “linguagem especial”. Assim, expressões do futebol são transpostas para o cotidiano – em alguns casos, até com excessiva malícia. Quem “esconde o jogo”, no flerte fica na “reserva”; mas, se faz “marcação cerrada” a ponto de ficar saciado, diz “Pimba na gorduchinha” com um tonzinho que por vezes beira o vulgar. Tudo isto diz respeito ao brasileiro e suas predileções, à sua psicologia. A língua é espelho.

Tanto carinho pelo tema origina mil e uma formas de dizer a mesmíssima coisa. A bola, por exemplo, inspira incontáveis sinônimos: pelota, criança, perseguida, vagabunda, margarida, maricota, nega, caroço, pipoca, redonda, gorduchinha. Ivan Cavalcanti Proença, autor de Futebol e Palavra (José Olympio), explica o fenômeno.

– A bola é a mulher: há que se tratá-la bem, com afeto, com intimidade, “dormir” com ela, para conservá-la ao seu lado, sempre.

Não raro, é possível identificar a gestação lexical do futebol.

– As expressões são uma criação dos jogadores e da imprensa. Romário criou, por exemplo, a expressão “peixe” para chamar algum companheiro, mas foram os jornalistas esportivos que, influenciados pela Liga Profissional de Basquete dos Estados Unidos (NBA), inventaram o termo “assistência” para o jogador que dá o passe para outro marcar o gol – diz Antonio Nascimento, ex-editor chefe de esporte do jornal O Globo e atual secretário nacional de futebol e direitos do torcedor, do Ministério do Esporte.

Criatividade

Foi dessa forma que grandes nomes da locução e da crônica esportiva deixaram seu legado à língua. João Saldanha, por exemplo, criou a divertida expressão “macaquinho namorado de girafa” (jogador que sobe e desce no campo, como um símio que namorasse uma girafa e se movimentasse para cima e para baixo, tentando beijá-la) – muitas destas, entretanto, saem de moda e pairam só nos arquivos imaginários de torcedores de todos os tempos.

Nelson Rodrigues cunhou expressões tornadas tão populares quanto “sandálias da humildade” e divertiu-se lançando modismos como “pose de Sarah Bernhardt em noite de estreia” (jogador confiante demais). Inúmeras gírias não chegam ao dicionário, ou entram numa edição e saem na seguinte, por caírem em desuso. Dos 228.500 verbetes do Houaiss, os que possuem a rubrica “futebol” são cerca de 0,22%, ou seja, 502. Não é muito, mas a força do futebol na cultura fornece amplo conteúdo para invencionices.

Para o consultor de carreiras Max Gehringer, essa é a diferença entre a “pátria de chuteiras” e outros países ligados ao esporte.

– No Brasil, as expressões aparecem e somem mais rapidamente. Nós somos um povo que, historicamente, adota e descarta palavras, de qualquer idioma, sem muito pudor linguístico.

Monitoramento
A velocidade com que conseguem difundir bordões na mídia faz dos comentaristas e locutores uma fonte de expressões. Há pressão para que sejam originais e imprimam uma espécie de copyright na linguagem oral, o que funciona como marketing próprio e fortalece a imagem da emissora. Mas até técnicos podem disseminar termos e neologismos. Alguns têm consciência disso, avalia Sílvio Lancellotti, crítico de gastronomia e comentarista esportivo, colunista do portal R7.

– Os jogadores não criam quase nada, mas há treinadores com idiomas próprios, como o Cláudio Coutinho, que inventou a expressão “ponto futuro”, ou Sebastião Lazaroni, que tentava falar bonito, mas era quase sempre incompreensível – opina.

O próprio Sílvio afirma ser autor de neologismos.

– O professor Pasquale (Cipro Neto) chegou a brincar comigo, certa vez, porque eu, para não repetir palavras, usava “porfia”, “pugna”, “prélio”, “cotejo”, em vez de “jogo” ou “partida”. E usava “nederlandês” em vez de “holandês”. O grande Osmar Santos tinha até um amigo, o Armando Calandriello, encarregado de criar novas expressões.

Um nó cego, entretanto, emaranha o debate: os jogadores monitoram-se tanto em suas declarações públicas que perdem a sintonia com a linguagem das ruas.

– Como são entrevistados após o jogo, com a adrenalina ainda a mil, sabem que não podem correr o risco de dizer exatamente o que estão sentindo. Por isso, decoram discursos. E dizem coisas como “almejar a vitória”. Quem mais fala “almejar” na linguagem cotidiana? Ninguém. Um jogador vê um outro na TV e copia o discurso. E isso faz com que palavras e termos, como “ter atitude”, “o grupo” e “em torno do nosso objetivo maior”, virem marcas registradas de futebolistas – diz Gehringer.

Para além da verborragia da mídia e da empolação no campo, o brasileiro fez o futebol ter impacto em sua linguagem. Com o futebol, e sem perceber, o Brasil faz sua língua ser tecida na alegria e na dificuldade de um jogo cotidiano, em que o craque é o próprio povo.

Um dicionário bom de bola

Pesquisadores ligados à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) lançaram em 8 de maio o Dicionário Field (http://dicionariofield.com.br
), um site trilíngue de expressões do futebol, que organiza as palavras agrupando-as segundo as situações em que aparecem.

O grupo de pesquisa SemanTec buscou uma forma menos tradicional de apresentação lexical. Além da definição do termo guarda-chuva (o "cenário"), cada entrada mostra termos ligados ao mesmo conceito. O cenário "chute", por exemplo, agrupa tanto "bicicleta", "bomba" e "de letra" como termos afins, mesmo não sinônimos, como "arriscar" (de fora da área).

[Fonte: www.revistalingua.uol.com.br]

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