Por Antonio Prata
Onze controles remotos, eis o surpreendente saldo da minha
faxina: 11 controles remotos que há muito já não controlavam, mesmo que
remotamente, coisa alguma.
Ao longo dos anos, as TVs, aparelhos de som, DVDs e videocassetes
(juro, até videocassetes) a que serviram foram partindo e deixando-os para
trás: órfãos, sem ocupação ou residência fixa, vagavam pela casa ao sabor do
acaso; erravam pelos planaltos das cômodas e acampavam nas cordilheiras dos
sofás como paraquedistas caídos no deserto; escondiam-se em gavetas e estantes
como aqueles soldados japoneses que, décadas após o fim da guerra, seguiam
enfronhados na mata, temendo o inimigo.
Pois o inimigo era eu: terminada a captura, meti o
desconjuntado exército de Brancaleone numa sacolinha plástica e o sepultei no
fundo da lixeira.
Imagino que jogar controles remotos no lixo fira gravemente
alguma Convenção de Genebra ecológica –não era a intenção avolumar aterros
sanitários nem poluir lençóis freáticos com o chorume das minhas teclas SAP–,
mas a visão daqueles defuntos eletrônicos me trouxe um sentimento de urgência:
eram eles ou eu.
Meu finado tio-avô costumava dizer que "Desmantelo só
quer começo". O Diabo mora nos detalhes e a pá emperrada de uma batedeira
pode precipitar a decadência de um império. Meu tio-avô sabia do que estava
falando, ele construiu um império –minas de estanho, manganês– e em sua casa
uma batedeira manca não sobrevivia dez minutos.
O cronista Humberto Werneck, também atento à grandeza que o
miúdo esconde, escreveu uma vez sobre a insidiosa contribuição dos copos de
requeijão para o fim de um casamento.
Aos poucos, esses intrusos vão cavando espaço no armário da cozinha, empurrando lá pro fundo as
taças que, no início do namoro, assistiam da primeira fila aos beijos e abraços
–é a vulgaridade galgando o terreno da paixão.
Até que um belo dia você acorda e descobre que o vinho do
amor virou água da bica num copo da Itambé –"Desmantelo só quer
começo".
Tenho medo: numa casa em que 11 finados controles remotos
permanecem insepultos por anos a fio, o desmantelo já começou faz tempo, já
criou raízes, frutos, lançou esporos.
Minha cozinha é cheia de copos de requeijão. Minha gaveta de
meias é um sítio arqueológico: poderia escrever uma autobiografia do fim da
adolescência até hoje, cada pé representando uma fase da vida.
Perder o araminho do pão é uma das duas atividades a que me
dedico com mais afinco –a segunda é fechar o saco com aquele nó troncho, lamentando: por que
eu sempre perco os araminhos? Por que eu sou assim? Não será possível mudar, me
organizar, tomar as rédeas da vida?
Claro que é -digo a mim mesmo, enquanto vejo o caminhão de
lixo deglutir os expurgos da minha faxina. Este é o início de uma nova fase. A
partir de agora serei apolíneo, japoneses e alemães virão fazer comigo estágios
sobre organização.
Entro em casa de queixo erguido, peito estufado e meu ânimo
de gladiador existencial dura quatro segundos: só até ver minha mulher com as
mãos enfiadas entre as almofadas do sofá, perguntando se por acaso eu não vi,
em algum lugar, o controle da televisão.
[Fonte: www.folha.com.br]
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