RESUMO O escritor J.P. Cuenca responde a texto de Luciana
Villas-Boas publicado na "Ilustríssima" de 23/2, no qual a agente
apontava a obsessão do autor nacional em obter projeção no exterior,
antes de consolidar-se no Brasil. Para Cuenca, dimensionar a pretensão
artística pela demanda do leitor médio é mediocrizar a literatura.
*
Foi numa sala de embarque que li "A Tradução, essa Faminta Quimera - Para Quem Escreve o Autor Local?",
artigo de Luciana Villas-Boas publicado nesta "Ilustríssima" há dois
domingos. Estava nos Estados Unidos para divulgar a tradução de um
romance, convidado pelas universidades de Stanford, UCLA, Princeton,
Yale, Brown, Illinois, Indiana e NYU. Apesar da lista elegante, foram leituras de alcance restrito, para turmas de pós-graduação. Ainda não cheguei ao sofá da Oprah ou à lista de mais vendidos do "New York Times".
Foram necessários três anos e meio para que se esgotasse a primeira fornada, de 3.000 exemplares, de meu livro mais recente, que agora terá nova edição.
Embora não seja um estrondo comercial, "O Único Final Feliz para uma
História de Amor É um Acidente" (Companhia das Letras, 2010) já chegou
às livrarias de Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, França e EUA,
ainda que em distribuição restrita. Até junho, será editado na Finlândia
e na Romênia.
O mérito é de cada um dos tradutores que se apaixonou pelo livro,
normalmente propondo a tradução e antecipando-se a acordos editoriais. É
da agência e dos editores estrangeiros que acreditaram nas
excentricidades deste escritor. Mas nada disso seria possível sem o
programa de traduções da Fundação Biblioteca Nacional.
Sua retomada foi fundamental para a difusão da nossa literatura no
exterior nos últimos anos. (Importante lembrar que não se trata de
invenção brasileira. Muitas das traduções que consumimos no Brasil são
fruto de iniciativas similares, já bastante tradicionais em mercados
como a Europa.)
Diferentemente de Villas-Boas e de Raquel Cozer, que também publicou
texto na penúltima edição deste caderno, não sou grande conhecedor dos
números de exemplares vendidos meus ou dos meus colegas de geração -numa
mesa de literatos brasileiros dos anos 10, falar disso é tabu maior do
que teorizar sobre a própria produção (ou do que confessar a inveja que
temos dos escritores gaúchos).
Por isso não tenho o número total de vendas do meu livro fora do Brasil,
mas desconfio que seja maior que o doméstico. Se contarmos pelas
tiragens, ele foi impresso três ou quatro vezes mais no exterior. Também
foi mais resenhado fora. Agora a imprensa argentina e francesa começam a
falar dele, apontando aspectos que a crítica brasileira, portuguesa ou
alemã não tinham levantado. E o romance começa a ser lido com atenção
por alguns estudantes estrangeiros. Essas novas camadas de leitura jogam
luzes diferentes à obra e oxigenam o seu autor.
Em termos absolutos, são números ainda pequenos. É um começo e uma
aposta. Deixo, no entanto, ao departamento comercial das editoras e
agências o papel de julgar produção literária e sua repercussão ao longo
da história por desempenho das vendas.
ESTOURO
Ao contrário do que alguns colegas e editores sugerem, não acredito que
um escritor deva moldar sua literatura com o objetivo de ser acessível e
virar um "estouro de mercado". Num país que transformou autores como
Guimarães Rosa e Clarice Lispector em cânone, dimensionar pretensão
artística sob a demanda do leitor médio seria fruto de uma inversão
lógica que, no limite, nos levaria ao grunhido.
Continuo a escrever exatamente o que quero, mas sempre me disponho ao
embate. Nos últimos anos tive a sorte de vender livros em vilarejos ao
norte da Alemanha, em balneários caribenhos, em Macau e no Meio-Oeste
americano. Também o fiz em dezenas de cidades do meu país, de Foz do
Iguaçu ao interior do Maranhão.
O trabalho de arregimentar novos leitores -para mim e para a literatura
brasileira- é um corpo a corpo ao qual tenho dedicado boa parte do meu
tempo na última década, dentro e fora do Brasil. É o foco do meu
trabalho? Não. Escrevo para isso? Não. Ganho dinheiro com isso? Aqui,
pouco. No exterior, nenhum. Mas esses encontros ajudam a entender o que
faço. E, ainda que entre a espetacularização da figura do escritor e uma
difusão efetiva do hábito da leitura exista um abismo por trás de uma
cortina de fumaça de boas intenções, com sorte ganho um ou outro leitor
ao final dessas performances. Por isso, continuo.
Cada leitor é tão importante quanto o próximo. "20 leitores locais são
mais preciosos que uma edição na Bulgária"? Não. A não ser que a edição
búlgara tenha menos de 20 exemplares vendidos. O "autor local", como
Luciana Villas-Boas gosta de chamar, escreve para o mundo, onde buscará
seus leitores. Nem mesmo o seu país irá reconhecê-lo se ele não tiver
essa pretensão.
OBSESSÃO
Luciana Villas-Boas começa seu artigo com uma assertiva meio grosseira:
"O autor brasileiro é vidrado numa tradução". Depois, ao traçar com
detalhe os motivos do divórcio entre literatura e sociedade nas últimas
décadas, dá a dica que poderia explicar nossa estranha obsessão, mas
deixa a ponta meio solta.
O autor brasileiro não é vidrado numa tradução por "cultivar o sonho
colonizado e aprisionador do 'sucesso no Primeiro Mundo'", como o texto
diz. Ele é vidrado numa tradução porque quer ser lido. E porque nasceu
num país que tem lido muito pouco literatura contemporânea.
A tiragem inicial média de um romance em Portugal é a mesma que aqui,
ainda que nossa população seja quase 20 vezes a de lá. Nossos números
podem ser ainda mais vergonhosos: em 2011, quase quatro em cada dez
universitários não podiam ser considerados plenamente alfabetizados -os
dados são do Instituto Paulo Montenegro (IPM). Não há ação editorial que
resolva tal problema.
Talvez seja por isso que escritores brasileiros precisem repetir como um
mantra: escrevo exatamente o livro que posso e desejo escrever. Se a
obra pronta se transformará numa "aposta ousada" ou convidará novos
brasileiros ao hábito da leitura é algo que está totalmente fora da
minha lista de prioridades quando escrevo. Para a ira de alguns, não
apenas escrevemos o que queremos, mas também queremos ser lidos sem
nenhum tipo de concessão às necessidades do mercado editorial ou à
última onda anglo-saxônica. A lógica por trás do artigo de Villas-Boas
sucumbe ao provincianismo que ela credita ao autor brasileiro.
A mesmice não está na produção literária dos contemporâneos. É só ler
seus livros com os olhos abertos, o que alguns "scouts" de agência e
críticos literários com pedigree não costumam fazer, sempre procurando
neles outros que já foram escritos.
O "mais do mesmo" está nesse tom acusatório, vindo de certos editores,
acadêmicos e escritores que tentam corresponsabilizar a produção
contemporânea por um problema estrutural de educação no país. O
desprestígio da ficção brasileira no mercado local é fruto do
desprestígio da leitura como um todo no Brasil. Creditá-lo aos livros
publicados ou aos interesses dos seus autores é um erro que ajuda a
intoxicar ainda mais um ambiente não muito conhecido pela sua lisura.
O editor e escritor Paulo Roberto Pires, num seminário em que estivemos
juntos na Universidade Brown no ano passado, terminou seu panorama sobre
a literatura brasileira contemporânea com uma imagem arrasadora:
"O crítico marxista Francisco de Oliveira certa vez definiu o
capitalismo brasileiro como um ornitorrinco, aquele estranho animal que é
ao mesmo tempo da terra e da água, mamífero e ovíparo, uma exceção
eterna no conceito da evolução das espécies. Eu acho que é uma boa
metáfora para pensar a literatura brasileira hoje. Nós somos
ornitorrincos literários: temos público, mas não temos leitores, nós
viajamos ao redor do mundo, mas não temos reconhecimento no nosso país,
nós somos 'the next big thing', mas não ganhamos dinheiro com isso, nós
ganhamos a vida falando para muita gente sobre livros lidos por apenas
alguns deles. Nós somos, mesmo contra a nossa vontade, um espelho do
nosso país."
O ornitorrinco não tem culpa de ser ornitorrinco, Luciana. Libertemos o escritor brasileiro de mais essa.
J. P. CUENCA, 35, é escritor e colunista da Folha, autor de "O Único Final Feliz para uma História de Amor É um Acidente" (Companhia das Letras) e "O Dia Mastroianni" (Agir).
[Fonte: www.folha.com.br]
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