Dia desses, trafegando por uma rua da zona oeste de São Paulo, vi algo
que me chamou a atenção. No portão da garagem de uma casa, foi
"desenhada" a placa de trânsito que indica a proibição de
estacionamento. Como o leitor já deve ter suposto, trata-se do conhecido
"E", cortado por uma barra diagonal.
Até aí, nenhuma novidade, em se tratando de um país como o nosso, em que
muitas vezes o teoricamente desnecessário se torna lamentavelmente
necessário ou até obrigatório. Refiro-me à desnecessidade de pintar no
portão de uma garagem a placa de trânsito que estabelece o óbvio, que,
obviamente, só é óbvio quando o povo é civilizado.
Pois bem. Sob a "placa" pintada, havia uma palavrinha, um advérbio. Sabe
que advérbio é esse, caro leitor? Lá vai: "NUNCA", assim mesmo, em
letras maiúsculas e grandinhas.
Que lhe parece a combinação da placa que indica a proibição associada à
palavra "nunca"? Vamos lá. Normalmente, esse sinal de trânsito, quando
"verdadeiro", é pintado em placas de metal afixadas em postes etc.
Nessas placas, muitas vezes há também uma informação sobre o horário da
proibição. Isso significa, por exemplo, que é proibido estacionar das 8h
às 20h ou das 7h às 19h.
Já entendeu, caro leitor? Se sob a "placa" que indica a proibição se
escreve a palavra "nunca", indica-se que nunca é proibido estacionar
ali... Pois é. No lugar de "nunca" deveria haver a palavra "sempre",
certo? O fato é que a raiva que se passa quando se encontra o carro de
um/a pilantra na porta da garagem de casa é tanta que a vontade que se
tem é dizer/escrever "Nunca estacione aqui" ou algo do gênero. Aí se
metem os pés pelas mãos e se acaba trocando o sinal, ou seja, o positivo
("sempre") pelo negativo ("nunca").
Que fique claro, pois: em termos linguísticos (e lógicos), o que se vê
no portão da tal garagem é incorreto, a menos que de fato se queira
informar que ali se pode estacionar à vontade.
Esse fato me lembrou uma velha questão da Unicamp, baseada neste
fragmento jornalístico: "Malcom Browne, também da Associated Press,
deveria ter impedido que o monge budista em Saigon não se imolasse,
sentado e ereto, impedindo o mundo de ver o protesto em cuja foto
encontrou seu maior impacto?".
A banca formulou estas questões: "a) Se tomado ao pé da letra, o que
significa exatamente o trecho '...deveria ter impedido que o monge (...)
não se imolasse?'; b) Se não foi isso o que o autor quis dizer, que
sentido pretendeu dar a esse trecho?".
O caro leitor já percebeu onde está o nó do problema? Lá vai: o nó está
na associação entre o verbo "impedir" e o "não" da passagem "que o monge
budista não se imolasse". Na verdade, o que o autor quis dizer se
expressa com o mesmo texto que escreveu, com a simples eliminação do
advérbio "não". Teríamos o seguinte: "Malcom Browne (...) deveria ter
impedido que o monge budista (...) se imolasse?".
Compreendeu, caro leitor? Tomado ao pé da letra, o trecho informa
exatamente o contrário do que pretendia o seu autor. Em suma, um monge
se imolou, e Malcom Browne fotografou o seu autoflagelo. O que o autor
do texto quer saber é se o fotógrafo deveria ter feito o que fez, ou
seja, deveria ter fotografado a autotortura do monge e, com isso, ter
exposto ao mundo o significado do gesto monástico, ou deveria ter
tentado salvar a vida do monge, isto é, deveria ter impedido que ele se
imolasse (e não "que ele não se imolasse")?
Bem, tanto no caso do portão da garagem quanto no do texto jornalístico,
o "erro" não impede que se compreenda a essência da mensagem, mas...
Mas é claro que, quando/se possível, deve-se escrever aquilo que
efetivamente se quer dizer. É isso.
Pasquale Cipro Neto
[Fonte: www.folha.com.br]
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