Às oito horas e dois minutos da manhã da
quarta-feira passada, no instante do equinócio, quando dia e noite têm
exatamente a mesma duração, teve início o Outono. Estação que mais
parece um intervalo da natureza entre Verão e Inverno, entre a alegria
do calor e do sol e a (suposta) tristeza do frio e dos dias nublados, o
Outono é muitas vezes associado à decadência, declínio, ocaso e idade que precede a velhice.
No Outono, as folhas amarelam, as árvores se desfolham, o dia
encurta, a noite se alonga, começa a esfriar e o inverno vai lentamente
se aproximando. Em uma metrópole como São Paulo, com poucos parques,
bosques, árvores, natureza, fica acentuada esta percepção do Outono como
mera passagem entre estações mais marcantes. Nos parques da cidade, as
folhas secas, que poderiam formar tapetes para caminhar ouvindo seu
farfalhar, são limpas para que a grama ou a terra não fiquem cobertas.
A palavra e o conceito de Outono produziram uma interessantíssima controvérsia sobre a tradução do título do livro O Outono da Idade Média, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) publicado em 1919, depois traduzido para o francês como O Declínio da Idade Média (com este título, uma edição portuguesa circulou aqui até a edição de 2010 da Cosac Naify restaurar o Outono no título). Mas o que haveria de tão traiçoeiro em traduzir Outono por Declínio, sendo que o livro de Huizinga trata especificamente do século 15, ou seja, do fim da Idade Média e início do Renascimento?
O historiador medievalista Jacques Le Goff escreveu sobre isso em “A Propósito do Outono da Idade Média”, no livro O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval (Edições 70). “A escolha deste título [Declínio]
é significativa. Refere-se a uma visão cara à história do século XIX: o
Renascimento berço de um mundo novo, e este mundo novo só podia surgir
da morte do mundo antigo, um mundo que tinha envelhecido, definhado
exatamente naquele século XV, que é o espaço privilegiado de J.
Huizinga”, escreveu Le Goff.
A discussão refere-se a uma nova concepção de Idade Média (e mesmo
de história), que surgiu principalmente com a Escola dos Annales e o
trabalho de medievalistas como Marc Bloch, Lucien Febvre, depois
Braudel, Le Goff, George Duby e muitos outros que reconhecem em Huizinga
um precursor e inspirador. Não mais tratada como Idade das Trevas ou
intervalo morto entre a Antiguidade e o Renascimento, vários estudos
mostram a Idade Média como uma época definida com vibrantes
características e continuidades em relação ao Renascimento e ao mundo
moderno, para além das divisões abstratas do tempo e dos períodos
históricos. Da vida intelectual e universidades ao amor cortês, do
conceito de trabalho às noções de poder, do fervor religioso às
cruzadas, do imaginário da loucura aos estigmas e preconceitos, somos
também herdeiros deste período.
Mas, afinal, por que Outono e não Declínio? O
Outono, escreveu Le Goff em uma definição belíssima, “é a estação em que
parecem exasperar-se todas as fecundidades e todas as contradições da
natureza. É ele que, na arte, Eugenio d’Ors chama de fase barroca,
aquela em que se manifesta a nu, sem máscara, a exaltação das tendências
profundas de uma época. É essa exaltação que o torna tão fascinante.
Pois que, como cantava Agrippa d´Aubigné: ‘Uma rosa de Outono é mais que
qualquer outra requintada...’”.
Uma das características que Le Goff atribui a Huizinga é o uso de
algumas palavras-chave, como sendas de interpretação deste século
outonal, entre elas “sonho”, “visão”, “imagem” e “vida”. Dos dois
primeiros há o sonho do heroísmo (do cavaleiro) e do amor (cortês), a
visão da morte (tão bem retratada por I. Bergman em seu filme “O Sétimo
Selo”) e a presença das emoções, reveladas ou escondidas, e dos
fantasmas.
Quanto à vida, revela-se naquele Outono do século 15 um vitalismo
que procura incorporar a biologia na história, em frases como esta que
aparece logo na primeira página do livro de Huizinga: “A doença e a
saúde apresentavam um maior contraste”. Não se tratava mais da concepção
do corpo como mera morada da alma, envoltório do espírito, da doença
como estigma, mas de uma transição para a descoberta do corpo, da
sensorialidade, da saúde, da “materialidade” biológica da doença, da
sensualidade, em um momento de invenção do indivíduo e de sua identidade
pessoal, no nível da afetividade, da sensibilidade e da emoção.
Assim Huizinga começa seu livro em um capítulo intitulado “O teor
violento da vida”: “Para o mundo, quando era quinhentos anos mais novo,
os contornos de todas as coisas pareciam mais nitidamente traçados do
que nos nossos dias” (Editora Ulisseia). Por isso, no século 15,
escreveu Le Goff explicando o projeto de Huizinga e sua escolha por
estudar este século, “num tal momento da história, os contrastes
aparecem com uma evidência extraordinária, e é então que se pode melhor
compreender o que é uma civilização; é então que vêm plenamente à luz as
tensões que ali se albergam”.
Assim, em mais um Outono que recém se inicia por aqui, quando
começarem a cair as folhas das árvores, e os dias encurtarem lentamente,
talvez possamos viver e desfrutar desta estação em sua força e
plenitude próprias, não como mera passagem ou intervalo entre calor e
frio, verão e inverno, mas, conforme Le Goff, como estação em que
parecem exasperar-se todas as fecundidades e todas as contradições da
natureza, na qual evidentemente nos incluímos. E lembrar, com Huizinga,
em 1919, ao revelar aquele Outono do século 15: “O contraste entre o
silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, do mesmo modo que entre o
Verão e o Inverno, acentuava-se mais fortemente do que nos nossos dias. A
cidade moderna mal conhece o silêncio ou a escuridão na sua pureza e o
efeito de uma luz solitária ou de um grito isolado e distante”.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História (www.narrativaum.com.br) e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
[Fonte: www.publishnews.com.br]
[Fonte: www.publishnews.com.br]
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