sábado, 12 de novembro de 2016

Quando Clarice encontra Borges: o espaço infinito no conto ‘A Quinta História’

Sobre o conto A Quinta História, de Clarice Lispector, e a profundidade do infinito de Jorge Luis Borges


Escrito por VALTER DO CARMO MOREIRA


O conto A Quinta História, de Clarice Lispector, apresenta ao leitor um discurso interior da personagem para si mesma. Ao narrar um mesmo conto várias vezes, de maneiras diferentes, sem alterar seu núcleo, a morte das baratas nos desvela uma estrutura narrativa concêntrica e espiralada, na qual cinco histórias ilustram uma espécie de jogo de espelhos ou mise en abyme, empregada pela literatura e outras artes com o intento de refletir sobre si mesma, indicando-nos um processo de profundidade e infinito que nos faz lembrar dos contos de Jorge Luis Borges.
Clarice Lispector constrói em poucos parágrafos variações sobre um mesmo argumento, uma espécie de desdobramento de histórias que se sucedem, a partir de um mesmo ponto –  como matar baratas. A intertextualidade está presente desde o início, ao recorrer às Mil e Uma Noites já no primeiro parágrafo: “Farei então três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem”. Como Sherazade, a narradora seduz o leitor através de suas metáforas e figuras de linguagem, instigando sua curiosidade. A invocação dos contos árabes de as Mil e Uma Noites torna claro o processo de desdobramento da narrativa clariceana, que contará com a iteração obsessiva de uma mesma história encaixada, com o acréscimo de novas imagens e a multiplicação de títulos.
Essa simultaneidade de títulos e de histórias, esse desenredar-se do tempo cronológico é, como aponta Foucault, um anseio da literatura contemporânea: “Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso”. Nesse conto podemos visualizar a ideia de espaço de Foucault, na qual esse espaço em que vivemos, para o qual somos atraídos para fora de nós mesmos, esse espaço que corrói e sulca, é também em si um espaço heterogêneo. Não vivemos em um espaço vazio, diz Foucault, vivemos no “interior de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de serem sobrepostos”. Dentro do espaço diegético do conto A Quinta história, a posição da narradora é intermitente, cessa e recomeça de forma descontínua, porém acumula um certo vestígio das histórias anteriores. Esse espaço diegético, segundo Lefebve, é semelhante e, ao mesmo tempo, alheio ao nosso:
 “O mundo da diegese está, pois, despregado da realidade prática. Nele “vivemos” um tempo, um espaço, uma sucessão, uma causalidade que são, em simultâneo, semelhantes e totalmente alheios aos da nossa vida real”.
O discurso poético de Clarice presentifica a diegese pela narração, e também presentifica o mundo através da diegese. Sua natureza imaginária dificulta determinarmos sua narrativa, que se metamorfoseia, deixando de ser sobre as baratas, tornando-se uma narrativa sobre a própria narradora no momento em que ela faz a sua escolha:
“Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: ‘essa casa foi dedetizada’”.
No entanto, após essa escolha, ao iniciar a narração de sua quinta história, ela retorna à barata: “A quinta história chama-se Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: Queixei-me de baratas”. Assim como Clarice, tornamos ao início do nosso texto, a “narrativa em abismo” fecha seu círculo concêntrico e espiralado, que, ao apontar para o horizonte de seu fim, espantosamente faz vislumbramos o seu início. Seu infinito.
A intertextualidade proposta em seu primeiro parágrafo, ao evocar as Mil e Uma Noites, não é gratuita. Assim como Sherazade, nossa narradora com maestria e não sem algum malabarismo, todas as noites, sonambula, enfrenta as baratas que ameaçam seu sono, seus sonhos, subindo furtivas pelos encanamentos. Sua angústia só finda com o canto do galo e o raiar do dia seguinte. Se mil e uma noites lhe dessem, essa história, em mil e uma, se transformaria.
Jorge Luis Borges, leitor de As Mil e uma Noites, disse uma vez que o numeral arábico 1001 representaria o infinito. Pois, se não fosse o caso, poderiam ser as “mil noites”, o que daria um ar de completude. Ou, talvez, as “novecentas e noventa e nove noites”, o que, por sua vez, daria um ar de incompletude. No entanto, “mil e uma…”, não por acaso, foi o título escolhido. Uma unidade, seguida de dois zeros, seguido de outra unidade. Se tirarmos as duas unidades de sua grafia e imaginarmos os dois zeros, unidos, teríamos o símbolo do infinito {∞}. Ou então, se imaginarmos as duas unidades coladas ao símbolo do infinito (união dos dois zeros), e a virássemos de lado, teríamos a representação pictórica de uma ampulheta, um dos primeiros instrumentos inventados pelo homem em sua tentativa de mensurar o tempo.
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Bibliografia
BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do Espaço Literário. Perspectiva, 1.Ed. São Paulo, perspectiva; Belo Horizonte, MG: FAPEMIG, 2013.
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços, IN: Ditos & Escritos. Vol.III. Ed. Forense Universitária, RJ, 1999.
LEFEBVE, Maurice-Jean. O Discurso da Narrativa, IN: Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Trad. José Carlos Seabre Pereira. Livraria Almedina, 1980.
LISPECTOR, Clarice. A quinta História, IN: Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

[Fonte: www.homoliteratus.com]

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