sábado, 1 de dezembro de 2018

Maldade ou estupidez?

Das virtudes terapêuticas de não atribuir à má-fé aquilo que a burrice explica
 
Escrito por Sergio Rodrigues 

O grande linguista e psicólogo canadense-americano Steven Pinker lançou em 2014 um manual de estilo e correção textual chamado "The Sense of Style" ("Guia de Escrita", editora Contexto).

Trata-se de um gênero que os estudos linguísticos relegam há tempos à prateleira pouco prestigiosa dos manuais de etiqueta. Pinker não concorda. Para ele, a famosa guerra entre a velha gramática, que prescreve usos, e a linguística moderna, que descreve os usos da vida real, é história para boi dormir.

Por que haveria oposição entre estudar objetivamente a língua e usá-la com a maior consciência possível de seu lastro, suas potencialidades e limites? Podemos condenar a falácia de que falar "pobrema" indica deficiência intelectual do falante e, ao mesmo tempo, observar que falar "problema" lhe poupará alguns problemas na vida.

O livro de Pinker tem muito mais, mas hoje a coluna só quer falar da navalha de Hanlon, instrumento que o autor de "Como a Mente Funciona" afirma usar primeiro quando é chamado a explicar algum vacilo da humanidade: "Nunca atribua à malícia o que pode ser explicado pela estupidez".

Navalha de Hanlon é o nome pop do aforismo atribuído a um certo Robert J. Hanlon. (Curiosidade: encontra-se a mesma ideia, com outras palavras, numa história do escritor de ficção científica Robert A. Heinlein --o que, se for coincidência, é uma coincidência e tanto.)

Pinker puxa a navalha no capítulo 3, quando se pergunta por que tantos de seus colegas acadêmicos escrevem aquela prosa chata, turva e cheia de jargão lá deles. Por que a escrita clara e bem cuidada é minoritária num ramo em que as pessoas são inteligentes, bem informadas --e obrigadas a dissertar?

A teoria mais popular é que acadêmicos escrevem textos ilegíveis de propósito, para disfarçar o fato de terem pouco ou nada a dizer. Copio o parágrafo (tradução minha) em que essa teoria da picaretagem é navalhada por Pinker:

"Conheço muitos estudiosos que nada têm a esconder e nenhuma necessidade de impressionar. Fazem trabalho de ponta em áreas importantes, sabem defender ideias claras e são pessoas honestas, gente boa, com quem você gostaria de tomar uma cerveja. E mesmo assim o que escrevem é lixo."

A explicação, segundo o autor, é a maldição do conhecimento. Para quem sabe algo, é difícil imaginar como seria não saber. No entanto, sem esse exercício de empatia, como traduzir para o leitor a ideia que só a você parece óbvia? Pinker vê a presença da maldição muito além da academia, em todas as atividades humanas.

Me lembrou o que disse outra canadense batuta, a romancista Margaret Atwood: "Todos pensam que os escritores sabem mais sobre o funcionamento da mente, mas isso é um erro. Eles sabem menos, por isso escrevem. Para tentar entender o que os outros acham natural".

A conclusão de Pinker é que o academiquês não é filho da má-fé, mas da estupidez (uma combinação das duas explicações parece recomendável). De todo modo, uma estupidez definida como falta de imaginação e que ataca pessoas de grande capacidade intelectual.

Fiquei pensando que, além da evidente sabedoria, essa troca da malícia pela estupidez como ferramenta explicativa pode ter outras virtudes. Que tal um bálsamo de Hanlon, que em vez de cortar aliviaria a dor de feridas abertas no tecido das relações afetivas pela guerra política? Estupidez e maldade podem ter efeitos semelhantes, mas a primeira é mais fácil de perdoar.


[Fonte: www.folha.com.br]

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