Das virtudes terapêuticas de não atribuir à má-fé aquilo que a burrice explica
Escrito por Sergio Rodrigues
O grande linguista e psicólogo canadense-americano Steven Pinker lançou em 2014 um manual de estilo e correção textual chamado "The Sense of Style" ("Guia de Escrita", editora Contexto).
Trata-se de um
gênero que os estudos linguísticos relegam há tempos à prateleira pouco
prestigiosa dos manuais de etiqueta. Pinker não concorda. Para ele, a
famosa guerra entre a velha gramática, que prescreve usos, e a
linguística moderna, que descreve os usos da vida real, é história para
boi dormir.
Por que haveria oposição entre estudar objetivamente a
língua e usá-la com a maior consciência possível de seu lastro, suas
potencialidades e limites? Podemos condenar a falácia de que falar
"pobrema" indica deficiência intelectual do falante e, ao mesmo tempo,
observar que falar "problema" lhe poupará alguns problemas na vida.
O livro de Pinker tem muito mais, mas hoje a coluna só quer falar da
navalha de Hanlon, instrumento que o autor de "Como a Mente Funciona"
afirma usar primeiro quando é chamado a explicar algum vacilo da
humanidade: "Nunca atribua à malícia o que pode ser explicado pela
estupidez".
Navalha de Hanlon é o nome pop do aforismo atribuído a
um certo Robert J. Hanlon. (Curiosidade: encontra-se a mesma ideia, com
outras palavras, numa história do escritor de ficção científica Robert
A. Heinlein --o que, se for coincidência, é uma coincidência e tanto.)
Pinker puxa a navalha no capítulo 3, quando se pergunta por que tantos
de seus colegas acadêmicos escrevem aquela prosa chata, turva e cheia de
jargão lá deles. Por que a escrita clara e bem cuidada é minoritária
num ramo em que as pessoas são inteligentes, bem informadas --e
obrigadas a dissertar?
A teoria mais popular é que acadêmicos
escrevem textos ilegíveis de propósito, para disfarçar o fato de terem
pouco ou nada a dizer. Copio o parágrafo (tradução minha) em que essa
teoria da picaretagem é navalhada por Pinker:
"Conheço muitos
estudiosos que nada têm a esconder e nenhuma necessidade de
impressionar. Fazem trabalho de ponta em áreas importantes, sabem
defender ideias claras e são pessoas honestas, gente boa, com quem você
gostaria de tomar uma cerveja. E mesmo assim o que escrevem é lixo."
A explicação, segundo o autor, é a maldição do conhecimento. Para quem
sabe algo, é difícil imaginar como seria não saber. No entanto, sem esse
exercício de empatia, como traduzir para o leitor a ideia que só a você
parece óbvia? Pinker vê a presença da maldição muito além da academia,
em todas as atividades humanas.
Me lembrou o que disse outra
canadense batuta, a romancista Margaret Atwood: "Todos pensam que os
escritores sabem mais sobre o funcionamento da mente, mas isso é um
erro. Eles sabem menos, por isso escrevem. Para tentar entender o que os
outros acham natural".
A conclusão de Pinker é que o academiquês
não é filho da má-fé, mas da estupidez (uma combinação das duas
explicações parece recomendável). De todo modo, uma estupidez definida
como falta de imaginação e que ataca pessoas de grande capacidade
intelectual.
Fiquei pensando que, além da evidente sabedoria,
essa troca da malícia pela estupidez como ferramenta explicativa pode
ter outras virtudes. Que tal um bálsamo de Hanlon, que em vez de cortar
aliviaria a dor de feridas abertas no tecido das relações afetivas pela
guerra política? Estupidez e maldade podem ter efeitos semelhantes, mas a
primeira é mais fácil de perdoar.
[Fonte: www.folha.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário