sexta-feira, 19 de abril de 2024

O teatro no coração do cinema

 

Durante o Festival de Avignon, no verão de 2021, o realizador francês Benoît Jacquot acompanhou o trabalho de preparação dos espectáculos de Isabelle Huppert e Fabrice Luchini. O resultado, agora lançado com o título De Cor(ações), é uma bela celebração da arte de representar.

                             Isabelle Huppert em Avignon: como dizer o texto de Tchékhov?

Escrito por João Lopes

Seria uma pena que o novo filme de Benoît Jacquot (a partir de hoje nas salas) fosse ignorado devido à estranheza do seu título português. De facto, De Cor(ações) - assim mesmo, com “ações” entre parêntesis - não será a designação mais fácil de interpretar. Justifica-se, por isso, um pequeno inventário da sua estranheza - até porque, como se perceberá, tal estranheza é totalmente motivada.

Jacquot decidiu documentar o trabalho de dois intérpretes, Isabelle Huppert e Fabrice Luchini, ambos já ligados à sua filmografia - Huppert, por exemplo, estreou-se no universo de Jacquot com o belíssimo As Asas da Pomba, adaptação de Henry James datada de 1981. Desta vez, encontramos Huppert e Luchini, no verão de 2021, a preparar espetáculos no âmbito do Festival de Avignon.

Que acontece, então? Acompanhamo-los durante os ensaios, enfrentando a árdua tarefa de decorar os textos que vão interpretar. Dito de outro modo: trata-se de memorizar esses textos, isto é, sabê-los “de cor”. Em francês, a expressão “de cor” utiliza a palavra “coração”, “par coeur”, daí nascendo o título que Jacquot escolheu: Par Coeurs (com “coração” no plural).

Como traduzir Par Coeurs? Mesmo considerando que De Cor(ações) não reproduz as ambivalências do original, não posso deixar de reconhecer que não tenho resposta para tal pergunta. Haveria, talvez, uma ou outra alternativa que dispensasse qualquer hipótese de fidelidade ao original (por exemplo, “A Memória das Palavras”), mas não tenho a pretensão de encontrar uma “solução” para tão curioso imbróglio. Simplificando, digamos que estamos perante um invulgar e envolvente exercício de cinema que merece ser descoberto. 

 

Elogio do trabalho

Huppert está a estudar o papel central de Liubov, em O Cerejal, de Anton Tchékhov, encenado por Tiago Rodrigues, num espetáculo em que participaram Isabel Abreu e, na parte musical, Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves. Descobrimo-la num impasse motivado pelos modos de dizer esta frase: “A desgraça parece-me tão inverosímil que já nem chego a saber o que pensar. Estou confusa.” Na tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra da mesma peça (publicada como O Ginjal, ed. Relógio D’Água, 2006), a frase surge ligeiramente diferente: “A desgraça parece-me tão inverosímil que não sei o que pensar, estou confusa…”

Luchini surge numa teatralidade “alternativa”, já que o seu labor não envolve uma peça. Prepara um monólogo, dir-se-ia uma conferência (apresenta-se mesmo sentado, com um microfone à sua frente), tendo com base diversos textos de Nietzsche, e também algumas citações de Pascal e Baudelaire. Também ele se fixa obsessivamente numa frase, em tom conclusivo, que resume o “génio de Nietzsche”: “Porque cada um tem necessariamente a filosofia da sua pessoa, partindo do princípio que se é uma pessoa.”

Tudo isto nasce de uma clara cumplicidade, artística e afetiva, de Huppert e Luchini com o realizador - a presença de Jacquot, em 
off, torna-se mais sensível quando lança algumas questões sobre o modo de dizer os textos. Não estamos, portanto, perante uma dessas reportagens (?) em que, convictamente ou porque nesse sentido são manipulados, os atores falam da sua arte como se fosse um medicamento capaz de curar todos os males do mundo, ignorando a especificidade do seu trabalho. A palavra-chave é essa: trabalho - os textos são árduos, a sua beleza decorre também da sua resistência. 

Uma genealogia francesa

Não há muitos filmes como este Par Coeurs / De Cor(ações). Nele se resiste à ditadura artística das telenovelas e seus derivados que promove a noção (?) segundo a qual representar é apenas ser “natural” - como se qualquer “naturalidade”, eventualmente interessante, não fosse também o resultado de um trabalho que começa na recusa de um banal espontaneísmo pueril.

Aliás, convém acrescentar que dizer isto não significa que, cada vez que um cineasta aborda o trabalho dos atores, o resultado esteja obrigado a ser uma “tese” sobre o que quer que seja. Para ficarmos por um exemplo eloquente, lembremos essa comédia genial sobre a “fabricação” de uma estrela de cinema que é 
The Patsy / Jerry, Oito e Três Quartos (1964), de e com Jerry Lewis, por certo um dos títulos mais admiráveis que já se fizeram sobre os bastidores do “star system”.

Entre nós, o lançamento do filme de Jacquot acontece uma semana depois da estreia da cópia restaurada de 
O Amor Louco (1969), de Jacques Rivette, numa “coincidência” que merece ser sublinhada. À distância de mais de meio século, eis dois autores a enfrentar os mecanismos, ora transparentes, ora enigmáticos, instaurados pelo artifício das palavras - e pela verdade que esse artifício pode transportar. Através das suas diferenças, são cineastas que mantêm viva uma tradição francesa que passa por mestres como Jean Renoir ou Sacha Guitry, sem esquecer a obra de Marguerite Duras, território singular de coabitação de literatura e cinema. Se precisarmos de uma ilustração simbólica de tal genealogia, poderemos acrescentar que, em India Song (1975), título fundamental de Duras, havia um assistente de realização chamado Benoît Jacquot.

[Fonte: www.dn.pt] 

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