terça-feira, 16 de abril de 2024

Epifania no quarto de empregada

 

Escrito por Carlos Alberto Mattos

No imaginário burguês, o quarto de empregada é um território de exclusão. Ainda que parte da casa ou apartamento, esse sucedâneo da senzala é um local onde os patrões raramente entram e com ele pouco se importam. Na arquitetura, equivale ao mito de que a empregada doméstica é “parte da família”, mas uma parte à parte, que deve permanecer segregada dos demais aposentos, dos quais se separa pela cozinha e a área de serviço.

No cinema brasileiro, o quarto de empregada tem feito aparições significativas em filmes como Que Horas Ela Volta?, Doméstica, O Outro Lado da Cozinha, Recife Frio, Domingo e Casa Grande. Nunca, porém, ganhou tanto protagonismo como em A Paixão Segundo G.H., transposição do livro homônimo de Clarice Lispector para o cinema por Luiz Fernando Carvalho. Aqui o quartinho dos fundos torna-se cenário de uma epifania lúgubre para a dona da casa, que ali não entrava há anos.

O livro de Clarice é uma experiência radical de concentração dramática. Seu tempo real são os poucos minutos em que, após a demissão da empregada e antes que outra tome o seu lugar, G.H. resolve arrumar a casa, a começar pelo quarto dos fundos. A escultora pertencente à alta burguesia de Copacabana nos anos 1960 desfruta de uma vida suntuosa no espaçoso apartamento apinhado de obras de arte em frente ao mar. Para além da área de serviço, não era seu hábito frequentar. O apertado quartinho da empregada servia tanto para acomodar Janair, a doméstica negra, como para guardar trastes, coisas sem serventia.

Mas eis que ela se surpreende ao encontrar um ambiente limpo, claro, onde se destacam as figuras de uma mulher, um homem e um cachorro riscadas a carvão na parede. Uma caverna pré-histórica que falava dela e de sua vida, desenhada por Janair. Ao entrar no quartinho, G.H. começa a sair de si. A exploração prossegue e, ao inspecionar o interior escuro do armário, ela se depara com uma barata. Fecha a porta num reflexo e vê o inseto ficar preso a meio corpo, esmagado mas ainda vivo.

O que se segue é um longo fluxo de consciência de G.H. diante desse ser repulsivo que a encara e lhe desperta uma vertigem de identidade e uma crise de autopercepção. Enquanto Gregor Samsa de A Metamorfose de Kafka via-se subitamente transformado numa barata ao acordar, G.H. passa por um processo lento, esgarçado, no qual projeta no animal tudo o que ela é o que não é, incluindo “o deus” e o inferno. Um processo feito de antíteses, ditos e desditos reiterados e obsessivos, uma espiral em que G.H. se desfolha como se desfolhasse as cascas da barata.

Volta e meia, ela se dirige ou se refere a um amor que acabou consumido pelo tédio porque ela e seu amante não sabiam reconhecer onde estava o amor que de fato tinham um pelo outro. Às vezes fala para alguém que segura sua mão, podendo ser o leitor ou alguma entidade imaginária. Faz alusão também a um aborto feito no passado. Tudo, porém, é devorado pelo instante da epifania, o frêmito das antenas da barata e o misto de pavor e fascínio que toma conta de G.H. Ela avança no sentido de uma transcendência para baixo, que vai encontrar seu ápice num gesto repugnante.

Dreyer, Visconti, etc

Para dar conta dessa trip meio alucinógena, Luiz Fernando radicalizou a opção já testada em Lavoura Arcaica, qual seja a de não “adaptar” o texto à imagem. Em vez disso, ele faz os dois suportes conviverem simultaneamente: oralidade e visualidade sem hierarquia, amalgamados. Em última instância, o filme é um grande monólogo de uma subjetividade em turbilhão, a mil quilômetros de qualquer coisa estática ou monocórdica.

Ao contrário, os constantes espelhamentos do discurso e as frequentes mudanças de tom de G.H. sugerem uma linguagem polimorfa que multiplica a personagem em várias mulheres com suas vestes chiques, sua coleção de brincos, suas mãos que circulam pelo ar como que separadas do resto do corpo. À corrente contínua dos planos fluidos se soma uma montagem descentrada, em que as múltiplas faces de G.H. saltam de uma para outra ao sabor de uma ordem imprevista, inusitada. Estamos no reino de uma coisa sobrenatural que é viver, para citar Clarice.

Enquanto via A Paixão Segundo G.H. me vieram à lembrança dois filmes com Delphine Seyrig: ora o hieratismo de O Ano Passado em Marienbad, ora as deambulações de India Song, de Marguerite Duras. Além, é claro, do Carl Dreyer de A Paixão de Joana d’Arc, uma das inspirações óbvias para Luiz Fernando levar o transe de Maria Fernanda Cândido a alturas tão extremas. Difícil aquilatar o que terá sido o processo de preparação da atriz para esse tour de force de interpretação em que se ergue à altura, mais que de Delphine, de uma Falconetti brasileira.

Meticuloso e perfeccionista, provavelmente o mais sofisticado cineasta brasileiro, Luiz Fernando manejou ele mesmo a câmera com película de 35mm (quase uma extravagância hoje em dia) e cuidou da ambientação sonora repleta de impactos, surpresas, incômodos e peças clássicas aliciantes. Nesse quesito, o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler (de Morte em Veneza) foi a única inserção que me soou como uma concessão ao efeito fácil num filme todo burilado em alto nível. No entanto, levo em conta as razões do Luiz Fernando, que quis fazer uma homenagem a Visconti e Mahler:

“Há alguma coisa de Morte em Veneza [ou de Visconti] no início e no final de G.H. No início, quando a personagem nos conduz através daquele labirinto neoclássico de palheta veneziana, até alcançarmos a “nova senzala”. No final, havia enxergado na última fala de G.H., quando sua imagem se desfaz banhada em lágrimas, uma relação com as lágrimas e a maquiagem que se desfaz no close final de Gustav von Aschenbach [Dirk Bogarde] diante da imagem crepuscular e bela de Tadzio e o mar. Assim como também em G.H., logo após ‘Estou falando de Morte? Não, da Vida’, surge o mar de uma Copacabana crepuscular”.

O mundo dos imundos

O livro de Clarice foi escrito em 1964, no alvorecer da ditadura, e o longa de Luiz Fernando foi filmado em 2018, quando o país germinava o pesadelo de extrema direita. Ambos os momentos encorajam a leitura sociológica que se possa fazer do romance e do filme. Foi por esse caminho, aliás, que iniciei este artigo. Existe, sem dúvida, uma relação implícita entre a barata e o mundo dos excluídos, dos proscritos – dos imundos a que Clarice se refere.

No entanto, uma decisão dos roteiristas de associar diretamente a imagem da empregada Janair à aparição do inseto me pareceu cruzar uma linha para além da delicadeza. No belo posfácio que escreveu para uma recente edição do romance (Rocco, 2020), Luiz Fernando teceu paralelos entre a barata e Janair a partir da condição de “habitante ancestral da senzala contemporânea: invisíveis, dizimadas em suas dores (…) Anestesiadas, perdidas, dispensadas, desempregadas, assediadas, negras – ou não.”

Apesar da propriedade desse argumento, coloco a cena em discussão não tanto pelas possíveis conotações deletérias da associação, mas pelo seu potencial de reduzir o significado da metáfora. Mais que tudo, a barata é o outro – não só de classe, mas de espécie, de afeto, de gênero e de tudo o mais. O outro metafísico que nos interroga e nos desequilibra, fazendo-nos sair de nós mesmos para nos reencontrarmos – ou não.

No fim das contas, esse filme extraordinário, corajoso e requintado não se amofina diante dos desafios do original. Em vez disso, mergulha no seu tecido escamoso e delirante para daí extrair uma pérola de cinema.

 




[Fonte: www.carmattos.com]

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