Subitamente, um filme como Querida Léa, escrito e realizado por Jérôme Bonnell, leva-nos a reencontrar uma certa tradição da produção francesa em que o impulso romântico não exclui um humor contagiante - com o fundamental contributo de um conjunto de brilhantes intérpretes.
Grégory Montel a escrever sobre uma rocambolesca história de amor.Escrito por João Lopes
Vivemos ainda sob a avalanche de filmes de super-heróis e afins nos mercados cinematográficos de todo o mundo, a par do seu marketing tão maniqueísta quanto culturalmente poderoso. De tal modo que tudo aquilo que emanava da regra se tornou excepcional. Em sentido literal: uma tradicional comédia romântica - é o caso da produção francesa Querida Léa, esta semana chegada às salas portuguesas - apresenta-se como uma excepção que, com maior ou menor felicidade, tende a funcionar como exercício de resistência.
O menos que se pode dizer do trabalho de Jérôme Bonnell, na dupla condição de argumentista e realizador de Querida Léa, é que há nele a consciência da sua fragilidade no interior do actual imaginário do espectáculo que "conduz" a maior parte dos espetadores. Podemos perceber isso mesmo numa entrevista dada ao site "Allo Ciné" (publicada a 15 de dezembro de 2021, por ocasião da passagem de Querida Léa no Festival do Filme Francófono de Angoulême). Questionado sobre as componentes desta "história de amor", diz Bonnell: "Quando comecei a imaginar esta história, coloquei a mim próprio uma pergunta: que fazer nesta época em que tudo se mostra e tudo se vê? Que fazer face a este consumo frenético das imagens e da informação?"
Dito de outro modo: num mundo de continuada exposição de tudo (e de nada...), Querida Léa recupera o mais velho dos dispositivos românticos - um homem e uma mulher cuja relação se desagrega de forma mais ou menos rocambolesca - para observar um curioso paradoxo existencial. A saber: o sublime atrai o absurdo (ou o contrário...).
À mesa do café
O ponto de partida é simples: Jonas, coproprietário de uma empresa de construção, bate à porta da ex-namorada Léa, na esperança de refazer a sua relação... Na verdade, ela rejeita-o (de forma ambígua, há que o dizer) e Jonas vai sentar-se à mesa de um café do outro lado da rua onde habita Léa - pode até ir vendo uma janela aberta na casa de Léa e observar (ou imaginar) o que está a acontecer... O café em que se instala tem um proprietário que refaz o divertido cliché do barman capaz de escutar as lamentações dos clientes, mesmo as mais delirantes ou irrisórias, revertendo-as em surpreendentes lições filosóficas - vem à memória o admirável Moustache (Lou Jacobi), de Irma La Douce (1963), de Billy Wilder, e os seus diálogos com o polícia interpretado por Jack Lemmon.
Tudo isto parece obedecer a uma lógica narrativa bem conhecida. O certo é que o café não será um espaço de transição na construção narrativa do filme, mas o seu núcleo cenográfico. Porquê? Por uma razão que está condensada no próprio título: depois de comprar um número razoável de folhas para sustentar a sua decisão, Jonas instala-se a uma mesa para escrever a Léa.
Que escreve ele? Uma carta? Uma longa confissão? Em boa verdade, não sabemos. As folhas escritas são como o "MacGuffin" de um filme de Alfred Hitchcock: mantêm-se no centro das muitas peripécias vividas por Jonas, mas não são explicitadas, nem mesmo pelo dono do café que as acaba por ler - o seu "conteúdo" não é transparente, mesmo se a sua existência vai influenciando a perceção dos acontecimentos por parte de várias personagens (e também, claro, do próprio espetador).
As palavras de Bonnell na entrevista citada voltam a ser esclarecedoras, quando diz que lhe parece importante encontrar uma espécie de "gesto original" capaz de revalorizar o gosto da narrativa cinematográfica. Que é, então, o cinema? "Um ambiente em que temos tanto cuidado com aquilo que mostramos como com aquilo que ocultamos."
O valor das palavras
Saudemos, por isso, a capacidade dos actores darem vida a esta dinâmica de comportamentos e enigmas, com inevitável destaque para Grégory Montel, como Jonas, Anaïs Demoustier no papel de Léa, e Grégory Gadebois, demonstrando que a gestão de um café pode ter qualquer coisa de pastorícia das almas. Sem esquecer, em personagens secundárias recheadas de surpreendentes nuances emocionais, Nadège Beausson-Diagne (vimo-la, por exemplo, em 2010, no Filme socialismo, de Jean-Luc Godard) e Léa Drucker, uma das grandes actrizes francesas contemporâneas (atenção a No verão passado, de Catherine Breillat, recentemente lançado entre nós).
Resultado prático: nestas atribulações masculino/feminino ninguém é representante de nenhum "colectivo", seja ele de género ou definido por qualquer postura moralista. Especialmente requintada é a composição de Grégory Montel, conseguindo manter o seu Jonas num registo em que o sofrimento do adulto vai sendo pontuado por sinais de patético infantilismo, sempre escapando a qualquer facilidade caricatural.
A importância dos diálogos como elementos fulcrais de todos os acontecimentos faz ainda lembrar a referência tutelar de Éric Rohmer (1920-2010), mesmo não esquecendo a complexidade e as muitas singularidades da obra do autor de A minha noite em casa de Maud (1969). Em qualquer caso, fica a certeza de que o cinema francês sabe preservar e diversificar uma tradição narrativa em que as palavras nunca são descartáveis, mesmo (ou sobretudo) quando parecem ignorar os dramas dos humanos que as proferem.
[Fonte: www.dn.pt]
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